terça-feira, julho 30, 2013

Inferno gelado


Inferno gelado
por Rafael Belo

Tantas flores murchas se revelam no frio que muitos passam a acreditar no inferno glacial, não flamejante. Todo um mundo onde a flora não suportou a geada e saiu queimando do vento gelado ao congelar dos corações na hipotermia das vaidades. Rastejando nas infernais línguas serpenteando sempre fora da boca, gelando as boas intenções com um olhar distorcido, com gestos negativos e atos interesseiros. Há quem diga que os perfumes deixados pelas mãos floridas só ficam pelo amassar das flores.

Há também quem viva de invencionices e de atacar quem planta flores, quem espalha seus perfumes e esses se vestem de roupas frias para se disfarçar em todos os ambientes, em cada lugar, é como se fosse o próprio inferno gelado a procura de um sol. A velha história de o inferno são os outros, às vezes acaba por ser nós mesmos o inferno. Nós, incapazes de entender nosso interior, daqui onde tudo começa, tudo muda: de dentro para fora. Não é por muito tempo a beleza das flores rasas postas na nossa pele, mas as flores murchas sem água estão profundamente esperando serem regadas para voltarem a vida.

Não estamos falando de bondade ou maldade, porque por mais que o conceito geral simplifique assim, há toda uma maneira torta de se crescer, de se criar uma mentalidade vira-lata, de transformar rejeição, medo e insegurança em ataques. De ter prazer em perseguir, agredir e misturar as pessoas, as coisas, o dinheiro e o status. Se prestarmos atenção e apurarmos o olfato descobriremos uma praga de flores-cadáveres escondidas atrás de máscaras e mídias digitais. Tais flores cheiram realmente a pessoas mortas... Só que não são flores de verdade, são basicamente extensões do caule da planta.

Quanto tempo seremos extensões disfarçadas de flores? Onde ficam florir e espalhar o calor? Derreter o inferno gelado, regar nosso interior, descobrir qual tipo de perfume exalamos ou gear por todas as plantações espalhando cinzas de vida? Só há vigilantes da vida alheia, apontadores e detentores de dedos em riste, aproveitadores, oportunistas, impostores, bêbados de hipocrisia, radicais religiosos...? Não, sabemos que não. É apenas a velha fogueira de egos que agora está amplificada e muitos graus abaixo de zero na nossa indefinição congelada igual.

sábado, julho 20, 2013

Melodia do chuveiro (Miniconto)

Melodia do chuveiro (Miniconto)
por Rafael Belo
Era quase o silêncio total. Se não fosse o som insistente do chuveiro... Mas para ele era. Este também era o melhor momento do dia. Ouvir a água cair e escorrer da cabeça aos pés era uma alegria. Era a hora de pensar só, de deixar fluir todas as horas que se passaram. Era uma limpeza total. Primeiro da mente. Depois da pele e todo o corpo. A água escorria sonora e borbulhava pelo ralo. Uma música com a melodia das gotas. O melhor som para seus ouvidos e a alma cantava. Lá fora já não chovia há anos.
Pensando no que ainda não aconteceu, percebeu que não haveria mais banho como o seu. Riu da rima e de repente não havia mais água e, apesar da melodia do chuveiro ser ainda insistente, ele nem estava mais no banheiro. Mesmo calmo, se agitou e sentia que onde quer que procurasse não encontraria ninguém nem banheiros. Como se em toda poça rasa houve um profundo abismo e todo aquele quase silêncio não era dele, era de tudo ao seu redor. Só ouvia a água caindo e borbulhando no ralo.
De olho fechados caminhava de ouvido. Estava descalço. Caminhava de tato. Além de lá onde se encontrava havia um instrumento perdido em um espelho infinito cheio de pingos de ideias espalhadas pela sua superfície, mas pela sua profundidade estava todo o céu cheio de nuvens a explorar. Haviam tantos planos assinalados, mas carregados de bagagens abarrotadas prontos para serem limpos e abrirem espaços novos. Havia muitos dias brilhando atrás das nuvens e todos esses pareciam ouvir a melodia do chuveiro.
Neste imenso quase silêncio esticou a mão direita e percebeu que ela saia de um cortina de água. Ainda estava de olhos fechados quando tocou uma válvula fria. Deitou a cabeça. Sorriu de boca fechada. Girou a válvula para a direita. A melodia do chuveiro terminou. Estava limpo. Pronto para ser preenchido, pronto para seguir ouvindo mais baixinho aquele seu melhor som acompanhando a canção da alma. Havia calma e êxtase naquele olhar quando saiu do banheiro para toda a poluição sonora lá fora. 

quinta-feira, julho 18, 2013

Instrumento

Instrumento


Uma poça profunda um abismo raso
um ouvido surdo uma boca calada
corpos cantando com a pele

o espelho separando tudo que integre
o infinito ao grito preso mudo

o peso morinbundo do fundo do poço
agindo abismo enquanto toca a música

entre lá e além o fosso se acaba, a fossa
se espalha para a estação de tratamento
já é melodia coletiva em todas as vias

não mais se esvazia no particular movimento, tem seu lar aberto, é poesia , da alma instrumento.


(às 11h35, Rafael Belo, 18 de julho de 2013)

terça-feira, julho 16, 2013

Entre lá e além

Entre lá e além

por Rafael Belo
isto de fazer de tudo coisas, coisas parecidas, coisas iguais, coisas sem nome... Dá a entender que qualquer coisa vale, que qualquer sorriso é paixão  que todo olhar é interesse, que toda trilha é pra se caminhar, que tudo é cultura, que tudo é lixo, mas bem sabemos que não. Entre aqui e ali há tanta diferença e energia consumida quanto entre lá e além. A música, por exemplo, é tanta coisa e mexe com tantos detalhes de nós que pode ser o resumo mais complicado de todas estas coisas.

A música nos percorre do tato ao olfato, do toque ao paladar, da audição a visão, da alma ao coração e nos consume. E é de liberdade individual consumir o tipo de áudio de sua preferência e da mesma forma o coletivo não é obrigado a compartilhar de um gosto particular. Ou seja, ainda bem que inventaram os fones de ouvido. Ainda mais que entre a música e o áudio de consumo há um abismo profundo onde cabe somente a nós se jogar nele ou atravessá-lo.

Nem é tanto de cultura ou conhecimento, é o tanto que o corpo mexe sozinho e o quanto o acompanham a alma e o coração. É aquela melodia que nos abate e nos ativa, é aquela letra que nos "componhe" e trilha nosso próprio som. Como um encontro das nossas músicas, como uma cura para todo o mal. Então não há lá, aqui, ali e além tudo se transforma na mesma coisa. As pontes deixam de ser necessárias e nosso arrepio canta sorrindo o canto da vida, tudo dança todos dançam quando o som é bom.


Bom não de gosto. Bom de sentimento. Quando a música emana dos instrumentos somados a melodiosa voz, o som é divino e fazemos parte da canção. Somos o sentimento, o sentimento somos nós, há o reconhecimento daquela tradução da alma, do coração, daquele momento, deste pensamento, de tudo quanto a poesia flui e se emancipa do que diz a prosa, o cotidiano batido, a trova para dizer da sua forma que a criatura pode criar e voar com o som, ser criador, ser som, individual e coletivo, e então faz de qualquer profundo abismo uma rasa poça.

sábado, julho 13, 2013

Aquela brisa (Miniconto)




Aquele sopro (Miniconto)
por Rafael Belo
Aquele sopro de brisa soprava toda vida lá fora. Balançava as janelas e chacoalhava cada árvore. Uma conversa sussurrada ao pé do ouvido da cidade. Carícias das folhas, dança na noite em ritmo de agradecimento na harmonia do tempo não compreendido pelo seu passar. Mas, do outro lado da janela havia olhos ansiosos, carentes por tanta força e beleza. Levemente luminosos entregues ao preenchimento deste sopro, prestes a abrir a casa para a brisa entrar.

Olhos que olhavam fascinados. Obstinados a ter em si um pouco do sopro e muito de vida. Levaram todo o corpo para uma jornada da alma. Então, não cabiam portas. Abriram-se as janelas suavemente com a oscilação da brisa. Os olhos seguiram o sopro e saíram pelas janelas. Voaram pelo lado de fora da imaginação. Aposentaram as asas do olhar, transformaram suas raízes fixas na terra em aéreas e foram chachoalhar suas folhas, sussurrar carícias da noite.

Silenciosamente amanheceu. A brisa continuou. O sopro estava rouco, pois abafava o oposto do silêncio, ditador das cidades. Mas aqueles olhos estavam lá fora agora. Não fechariam as janelas novamente. Chacoalhavam, sussurravam, sorriam. Iam e vinham com olhos de crianças que deixaram de ser infantis sem perder a sinceridade, a surpresa, a curiosidade, deixaram se levar pelo ar. Árvores livres tocando o céu, a terra, sendo tocados pelo ar no sopro mantendo o fogo aceso esperando a chuva se misturar.


E a chuva vem como orvalho soprado, mas ainda é garoa formando formas, molhando bobos, encharcando livres saídos de todas as janelas atentos e dispersos para voar com o vento, ser movimento daquele primeiro sopro, pouco, porém intenso como uma única alma coletiva vestindo o vazio equivocado, evocado de uma solidão criada pela poesia que na verdade é uma imensa multidão sufocada pela dificuldade de expressar este sopro mais aqui dentro que lá fora.

quinta-feira, julho 11, 2013

Chutando areia

Chutando areia


Pelas brisas do meu raciocínio vai o pensamento
vai para o outro lado atrás das frestas para escapar
ventilar outros ares, habitar outros lares e se encaraminholar
fértil, vai levando o corpo e logo só pensa depois
que o ágil instinto agiu pela percepção

depois que o coração se fez leve
e todos braços cruzados, descruzaram

cruzaram a greve da culpa alheia
e saíram chutando areias onde não havia mar
onde não havia saída a não ser acender a Luz própria e brilhar.

(Rafael Belo, tarde de quarta-feira, 10 de julho de 2013)

terça-feira, julho 09, 2013

Leveza de ser


Leveza de ser
por Rafael Belo

Como se todos os mundos brilhassem em excesso nos incontáveis universos das eternidades. Como se as inúmeras estrelas se multiplicassem e habitassem fora do céu. Mas ao invés de ser lá fora ou na fertilidade da nossa imaginação, fosse dentro de nós, fosse cada um a espera de se descobrir. Descobertos por nós mesmos, poderíamos nos amar e ser felizes em nossas lutas diárias. Depois de muito sorrir e cantar com todos os universos cintilando nos olhos poderíamos somar tanta vida com outra. Formar uma aliança. Ser leveza.

Nossa natureza é de compartilhar. Mas é preciso saber acender esta Luz em nós. Ascender diariamente. Estar presente. Olhar e enxergar o outro como a si. Tocar com os pés descalços o caminho em nós. Nas ruas ou nas mentes é preciso primeiro se unir para depois caminhar e ver com o tato cada passo. Juntar este nosso espalhar e definitivamente para de julgar. Estamos tão pesados que nossos rastros causam erosão e solidão. E quando chega alguém querendo reviver este solo sem nem ao menos nos conhecer, ou nos ouvir, nos atiramos às cegas e nosso imediatismo transforma a bala doce em bala fatal impulsionada por pólvora.

Há casos raros das almas se reencontrarem, sentirem ser parte uma da outra e mesmo assim o tempo precisa ser respeitado. Não respeitamos... Nem a nós mesmos. Não ouvimos nosso corpo, nossa mente, nosso coração ou nossa alma. O momentâneo é obrigado a ser uma fila de para "sempres" sem ser nostálgico com o "era uma vez". Então, nossas próprias fileiras de eternidades oscilam como peças de dominó e o chão é o mesmo para todos. Nossa distração nós afasta primeiro de nós depois de tudo e nossa pressa sempre nos mata.

Perdemos a criança em nós e temos tantas crianças perdidas. Nossa capacidade de cultivar e cativar está escondida. A escondemos e a esquecemos para não termos responsabilidade, pois o outro é mais fácil de culpar. Todos os universos, mundos, astros e estrelas estão no nosso céu interno. Eles precisam brilhar em nós porque se você não é feliz fazendo alguém feliz, você começou a procurar a felicidade errada, a efêmera que acende uma vela para depois qualquer movimento apagar. Se ache e se lembre, assim tirará as nuvens da frente do sol e não haverá noite que o apague.

sábado, julho 06, 2013

Porta aberta (Miniconto)


Porta aberta (Miniconto)
por Rafael Belo

A porta se abriu com um ranger acumulado que parecia ecoar por anos. Como se fosse a primeira vez a ser aberta. Ela estava concentrada do outro lado. Havia uma cegueira impedindo a visão e tal sensação era provocada por uma chuva sem fim que dividia os aposentos. Ela pensava longe se deixando levar pelo som apocalíptico daquela queda d'água. Mas de alguma forma foi forçada a olhar para a garagem antes mesmo do ranger. Não havia ninguém lá quando com um forte estrondo a porta foi escancarada.

Contornou o ambiente decidida a não se deixar pregar peças pela solidão. Não controlava, porém, uma tremedeira assustadora, quase convulsiva. Apertou o interruptor da garagem e toda a energia oscilou na mesma fração de segundo do estouro das lâmpadas sentiu um aperto como se fosse sufocada por mão de ferro. O portão eletrônico se elevou. Impulsionada entrou no carro, tateou a chave reserva escondida no estofado do passageiro. Quando acordou estava nas ruas acelerando e acelerada.

Seus próprios pecados a embarcaram em uma aventuras nas águas. Uma fuga. Mais uma. Distraída, imprudente e egoísta deixou atrás de si um rastro de buzinas, xingamentos, rostos contorcidos e braços erguidos. Até onde iria? Sozinha não tinha rota ou parente. Sua mente ia na contramão. Só via a si mesma arremessando pedras pelo caminho e seguindo vazia como se desenhasse no ar às pressas e escrevesse na areia a própria definição.

A chuva passou e ela já havia distribuído raivas e ameaças por todo o trânsito. Ignorava o rastro que deixara. Viu toda aquela semana ser afogada e se afogou também. Ao menos pela primeira vez admitia. "Aceitava", finalmente, estar assustada e distante de quem ela era e do que se tornou. Era um objeto. Uma engrenagem defeituosa fazendo funcionar tudo o que detestava. Por um instante quis estar literalmente afogada. O momento passou tão rápido quanto veio. Precisava continuar a fazer escolhas. Só queria parar de repetir os próprios e os erros de todo mundo. De súbito, quase se arrependeu de tomar consciência. Afinal, conhecimento era reflexo de responsabilidade e já tinha passado da hora de crescer.

quinta-feira, julho 04, 2013

Próprios pecados


Próprios pecados


Chuva se afogou na distração
na contramão de toda a pressa das águas
correndo pelas ruas e avenidas egoístas
o clima nublado fechava outras pistas

Não havia motorista ou motociclista com boa vista
a visão era imprudente e a imprudência era o presente
da essência incoerente de remar nesta maré

a fé conduzia a alma, mas o corpo absorto em chegar
já estava no fim do caminho perdera todas as pedras,
não construiria sequer um ninho, estava tão sozinho quanto a reunião dos próprios pecados.


(Rafael Belo, às 08h, quinta-feira, 4 de julho de 2013).

terça-feira, julho 02, 2013

Uma aventura nas águas – crônica de segunda




Uma aventura nas águas – crônica de segunda
por Rafael Belo
 


Basta ser uma segunda-feira, mas nem é preciso dizer que com chuva forte e contínua quem dirige e pilota parece ter amanhecido na pior. A pressa continua a mesma dos outros dias e estações climáticas, porém os três pilares básicos dos condutores se intensificam. Estão mais egoístas, imprudentes e distraídos. Enquanto as ruas estão afogadas, a velocidade continua alta. Coitados dos motociclistas estão tomando banhos por todos os lados, levando fortes jatos d’água nos peitos e aumentando seus riscos de morte e afogamento.

Nas minhas contas matemáticas precisas, cerca de 90% da visibilidade dos carros está prejudicada. Tudo embaçado. Só é possível enxergar à frente e até assim é complicado porque o espaço entre os automóveis só está distante da sorte de não ter uma batida. Quase não há a distância de segurança e segue o fluxo do tráfego impaciente. Este comportamento da lei só para os outros segue alguns destes condutores por aí afora.

Seguem sem ligar a seta, sem respeitar o sinal vermelho e a vida alheia. Alheios ao que quer que suponham não lhes dizer respeito, opinam sobre até – e principalmente – assuntos que desconhecem por completo, como – vejam só – se dominassem completamente o tema. Parecem dirigir por aí na velocidade de chegar o quanto antes, de ser o primeiro mesmo sem premiação, só pelo gostinho de estar certo. Então, podemos falar do orgulho, do ter, e pensar ser, melhor que todos.

Seja na esperteza, seja na aceleração, tirar vantagem parece ser o fio desta meada molhada e mofada. Conscientemente ou consequentemente a aventura das águas não parece existir para deixar ninguém molhado ou na imprevisão do que vai acontecer pelo caminho. A proeza é chegar à frente e o mais rápido possível, não importa se é necessário e o quanto estamos aumentando o risco de morte por aí. Basta, então, ser uma segunda-feira cinzenta e chuvosa que a precisão dos imprecisos chega a 100% e todos de todas as cidades se afogam nos próprios pecados.