sexta-feira, fevereiro 28, 2014

Porta de todos (miniconto)



Porta de todos (miniconto)
por Rafael Belo

Ele estava cheio de palavras. Mais aquela e ia transbordar. Transbordou e imediatamente se viu levitar. Estava acima de todos aqueles lá embaixo. Seu orgulho ferido não caiu. Voou. Foi mais longe. Sentia-se poderoso. Ficou cego com a nitidez distorcida. Vomitou tantas palavras durante tanto tempo... Uma verborragia seguida de verdadeira hemorragia interna. Sangue jorrando da gastrite nervosa desconhecida. Para si mesmo e o vazio apartamento. Iria matar, mas se conteve. Matou-se. Não deixou sinais, cartas nem mágoas. Levou tudo com ele quando correu, pulou, se encolheu e atravessou a janela com impacto.

Achou ter pulado no sol a não ser pelo intenso frio. Porém, só lembrava-se disso. Um imenso intenso clarão. Uma sensação gelada queimando a pele, congelando os ossos. Não podia ser o sol. Claro. Via-se congelado como um silencioso pássaro, atento para qualquer movimento. Não havia calor. Apenas algo gelado queimando o estômago. Isto poderia ser seu fim. Não prestar atenção poderia ser fatal. Mas para Palo era o contrário. Prestar atenção o matava aos poucos. Sua regra do silêncio era uma lei marcial. Pensamentos, sentimentos, temperamentos eram todos guardados. Além disso, carregava sua mais calada cicatriz. Uma opinião terminada em morte...

Quando confundia sinceridade com oportunidade. Falou tudo de uma vez a uma pessoa presa à vida por um tênue fio desfiando. Ela ligou para ele enquanto morria. Palo falava sobre tudo o tempo todo para todos até então. Depois disso o brilho do olhar se apagou e uma irônica frieza se disfarçava para quem ousava olhá-lo de volta nos olhos. Enquanto lembrava eternamente deste seu ciclo via cicatrizes grosseiramente costuradas por todo seu corpo. Cada lembrança uma cicatriz falante. Não era o bastante para todos. Portanto, as tortas marcas, eram palavras mal costuradas na pele. Geladas. Queimavam.


Palo sentia ser este seu inferno. Mas não se sentia morto. Aliás, se sentia vivo em diversas variedades dele mesmo. Possibilidades talvez escolhidas por outras infinidades de eus paralelos em realidades se tocando em certos pontos e depois seguindo lado a lado. Uma rede predatória social na pesca pessoal dele mesmo. Então, o inferno era apenas uma porta na quina do apartamento de Palo e ele nem havia morrido. Apenas confundiu a quina com a janela e fora ao inferno sem abrir a porta. Arrombou-a. Esvaziado, transbordado, conseguiu abri-la para sair e voltou ao normal. Ao normal dele. Agora vazio de palavras.

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