quarta-feira, março 05, 2014

Lágrimas e fumaça (miniconto)


Lágrimas e fumaça (miniconto)
por Rafael Belo

Caíam cinzas de toda parte. Aquele fogo controlado virou descontrole. Estava vivo. Um demônio incontrolável feito de chamas. Um rosto desfigurado no calor derretendo a pele dos mais próximos. Nem brasas sobravam das vítimas. Não se via nada definido quando se via. Eram lágrimas e fumaça. Cinzas e pó. Expiando o pecado louco de cada crente da imposição, da violência verborrágica, ou simples falar desembestado, da conversão. Bastou um fósforo quase úmido e Mitara Tártaro confessava aos gritos sua piromania.

Mas seus gritos não eram só confissões. Haviam palavras desconhecidas pelas Pessoas saindo em um som arrastado como um mantra cantado por um abismo. Uma hipnose entre as vozes dela. Mitara foi a primeira a virar cinzas e no momento seguinte estava ao vento. Tudo. Cada lugar. Começou a exalar álcool. A maior destilaria de absinto do universo. O odor era tão forte quanto jamais um bêbado, ou o alcoólatra mais velho em atividade, experimentaria sentir. Nem deu tempo de pensar em identificar a origem do cheiro. Lágrimas ardentes escorriam abundantes e, então, fumaça. Cinzas.

Foi o vento com o fogo vivo. Ambos sorriam e sofriam na bipolaridade dos seus atos. Espalhavam-se tão rápido. Nem a luz chegava antes. Também tinham idolatria pelas cinzas de Mitara. Ela os libertou. Ficaria com eles por toda parte. Tanta ardência, calor e pressão trouxeram outro elemento. Chuva. Mas a água evaporava ainda nas nuvens recém-formadas. Nem por isso deixara de chover. Chuva de cinzas. O vento não a deixava cair e rasgando o tempo com a noção de realidade, ela corria o mundo. Aumentava sua quantidade. Até tudo ser fumaça e cinzas.

Logo a terra queimava por inteiro suas primeiras camadas. Também se levantara com os outros três elementos. O vento a transformou em um abafo. Morreu o fogo. Começou a chuva. E no momento do toque, entre as cinzas de Mitara e o solo. O maior medo passaria a tomar conta se alguém, agora, não fosse cinzas. Um pesado silêncio faria cair de joelho os quatro elementos, se eles ao menos tivessem pernas. Depois do fogo, foi-se a chuva. O vento, ainda ardente, assoviava desvairado. Secou a terra cinzenta. Só esta sobrou. Mas estava tão emaranhada com o resto do mundo... Não tinha mais a mesma identidade. Restara no planeta uma folha de calendário. Acusava fevereiro de um lado riscado e março. Mas era consumida ao poucos. Se sobrasse olhos e compreensão... Seu último resquício... Acusava... Quarta-feira de Cinzas. Depois, até esta se foi.

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