quarta-feira, abril 30, 2014

O rasgar das listas (miniconto)



por Rafael Belo

Se pudesse rasgava o corpo e andava só com a alma por aí. Claro, estaria pulsando porque o coração também seria todo alma. Não que a aparência física não importava, importava sim. Mas só até um limite, até uma medida... E Leciti, bem Leciti já tinha se arrependido de estar nua. Não havia como ignorar todos os olhares a analisando, mas este não era o incômodo. Tinha certeza. Estava sendo seguida por tarados e taradas. Afinal, tara não escolhe orientação sexual... Mas de qualquer jeito ela se sentia uma carne exposta, às vezes de primeira outra de terceira. Porém, cabeça dura como era, achava o chocar as pessoas e seus 15 minutos de fama até a próxima visualização seriam o suficientes.

Queria acabar com a hipocrisia social. Afinal, era só um corpo nu. Não era um dos mais procurados na internet? Pornografia? Sua vontade era de acabar com a bajulação das curvas, a coisificação das pessoas, esta procura insana de ser igual a outrem, principalmente com as listas. Com certeza iria criar um aplicativo de concretização do rasgar das listas neste mundinho virtual. Para Leciti, as pessoas nem sentiam o chão e viviam nas nuvens e, a maioria, nas nuvens dos outros. Por isso vivia repetindo:  Comida pronta e micro-ondas existem em quase todo lugar assim como gente. Gente sem cérebro falando um bocado como diria o Espantalho para Dorothy.

Leciti tinha alergia a simples ideia de listar algo. Ela começava a empelotar todinha. Seu ar parava de fluir. Mudava até a cor da pele. Sentia uma raiva imensa e começava a bufar como se fosse o Lobo Mal light dos Três Porquinhos das Disney. Só melhorava quando gritava. Sua alergia psicológica exigia um grito de liberdade e Leciti adorava gritar. Então, uma belezinha escultural no auge dos 19 anos nua e gritando no meio da ainda interiorana capital do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, só podia acabar no youtube e ser o assunto. Como se não bastasse a exposição, Leciti realmente teve um surto. Saiu rasgando todas as listas de amigos, familiares, colegas de trabalho, afazeres, promessas, compras...

No esbugalhar dos olhos de Leciti, ela foi detida. Presa por diversas infrações. A mais interessante era infringir a Lei do Silêncio... Haja garganta e hipocrisia. Com falta de vagas nas cadeias, presídios e delegacias... Preferiram acorrenta-la com a primeira corrente de bicicleta encontrada.  Não chamaram psicólogos nem assistentes sociais. Veio mesmo a mídia. Mas, ninguém queria saber da alergia e paranoia de Leciti. Todos perguntavam pela “loucura” dela e ela falava sem parar: não podemos nos aprisionar nos nossos corpos, nos corpos dos outros, nestas infames mídias digitais, precisamos parar de listar as coisas (e se coçava)...

Quando estavam todos satisfeitos e Leciti, se coçando, ainda exigia ter voz, um jornalista com cheiro de leite resolveu seguir à risca as ordens do patrão. 


- Fale mais devagar para eu listar aqui suas reivindicações..., começava o comunicólogo e Leciti, ainda na palavra listar, já voava para o pescoço do cabra e tirava a vida de mais um "inocente" foca do Jornalismo...

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei........causar impacto...chocar.....de repente .....mamys