quarta-feira, junho 25, 2014

Esfarelando (miniconto) – por Rafael Belo









Não poderia ser pelas incontáveis horas debaixo de sóis de todos os desertos, poderia? Cada pessoa tinha constelações só de astros reis permanentemente ao meio dia sobre as cabeças. Mas era ela quem pensava no plural. Estava sozinha há horas, aliás há dias... A pele de Sara desaparecia nas mãos, ela delirava. Era a própria insolação em seu oásis pessoal. Sentia-se severamente um zumbi. Enquanto suas ideias poluíam a mente enlouquecedoramente seus pedaços pareciam partir.

Caiam pelas esquinas sem sequer serem tocados. Não estavam apodrecidos. Pareciam esquecidos.... Como uma reação natural da falta de propaganda. Quem não é visto, não é lembrado, portanto, é esquecido. No delírio solar, Sara via seus membros aparecendo nas caixinhas de leite do passado, nas notícias dos telejornais do presente e nos nomes de praças ruas e avenidas do futuro. Ah, porque Sara garantia ser celebridade. Garantiu até perder a língua.

Estava esfarelando esquizofrenicamente, estava desaparecendo. Virava um pó cinza e rapidamente era varrida pelos moradores obcecados por limpeza. Sara saltava de esquina a esquina e se espalhava. Ficava um pouquinho em cada lugar. Uma doação literal para aquela cidade. Se todo aquele solitário cinza cobrasse o esforço de Sara ela estava certa em deixar os olhos, as orelhas, a boca, o nariz, a cabeça, o tronco, um braço para lá, outro acolá e as pernas acabam de se separar, mas estavam frente a frente.

O cérebro de Sara também se preparava para virar farelo e se tornar um monte de pó no asfalto. Ela não hesitou em deixa-lo. Suas lembranças já eram clara e gema cozidas naquele asfalto do inferno. Por último, Sara arrancou o coração do peito. Ele batia como uma ladrão coberto de cicatrizes que acabava de garantir uma plástica caso ficasse onde estava. Mas saiu. Partiu-se tanto... Mesmo tão nova, Sara tinha ideias e vontade suficiente para fazer o feito e fez. Reconstruía a cidade. Agora precisava de outro novo.


Ficava Sara sabidamente sarada.  Ela não olhava para trás porque realmente ficava. Quem partia era outra, era nova e Sara gostava da ideia de ser nova e da sensação de fugir, desaparecer e desaparecia.

Nenhum comentário: