quinta-feira, julho 31, 2014

dimensões



 gotas e estrelas se misturam
brilham evaporam, constroem um coração
convivem no vidro escorrido
transformam a distância do céu no toque da mão

cada fragmento junto consumido
cria no silêncio o ritmo, junção
o Amor esquenta na ponta do dedo resolvido
a despertar cada adormecido, quebra barreiras da dimensão

simbolizam todo o universo na chuva caindo
cadência concreta, conexão.


(às 23h, quarta-feira, 30 de julho de 2014, Rafael Belo)


quarta-feira, julho 30, 2014

segredo (miniconto) – por Rafael Belo





Não havia qualquer claridade lá fora. Apenas faróis nervosos cruzando as ruas molhadas. De pessoas existiam sombras passando rápidas tentando não se molhar na garoa gélida e persistente como o inverno soprando suave, mas denso. Estava frio como sair de uma sauna direto para graus negativos em plena noite. Gi Genérica estava com medo e tremia, mas o tremor era frio.

Sua visão estava turva. As distâncias se confundiam. Longe era perto, perto era longe. Gi se confundida e claro estava ficando tonta com tanta variação. Encostou a cabeça no vidro do carro e o embaçou com sua respiração quente.  Não sabia exatamente o que enxergava, então fechava os olhos e balançava a cabeça.

Quando o poste lá fora se apagou, Gi bateu a cabeça com tanta força a ponto de garantir a presença de todos os astros do universo e as estrelas já inexistentes, mesmo sendo luz artificial e gotas de chuva. Ela se deu conta da improbabilidade da situação. Como podia enxergar algo com a luz do poste apagada? Seu medo aumentou, mas não pensou na luz própria de globos celestes.


Todos os postes da rua começaram a oscilar e junto com os cruzados faróis entrecortados dos carros velozes, mais sombras corriam. Gi acordou assustada com um vulto tentando abrir a porta do carro. Ela escondia um segredo que seria bobo, mas escondê-lo era o problema. Então simplesmente gritou e saiu ensandecida pelas ruas deixando a vozinha trancada para fora do próprio carro.

terça-feira, julho 29, 2014

alimentando a alma




gotas caem do céu, estrelas permanecem
nossos olhares brilham e o todo aquecem
esquecem o tempo ao depositar a visão
no avesso daquele seu cotidiano, então
há a permissão da observação de outro ser humano
pode ser o vidro molhado refletido, outros planos
o universo estrelado invertido, conversando
chegando ao longe da longevidade da convivência
assistência das pequenas coisas imensuráveis
grandes coisas ínfimas, pequenas.

(às 19h33, 28 de julho de 2014, segunda-feira, Rafael Belo)


segunda-feira, julho 28, 2014

Vamos brilhar, por favor – por Rafael Belo





Você já parou simplesmente para parar? Assim sem motivo, razão, circunstância, apenas para perceber o tamanho imensurável de coisas pequenas e o quanto é ínfimo coisas imensas? Depositar um olhar do avesso daquele seu cotidiano, permitir ver pela visão de outro ser humano, mudar os planos?

É como olhar as estrelas da cidade iluminada e ver um ou outra em destaque, mas saber com certeza da existência de muito mais. Há uma longevidade muito distante do imediatismo imposto por nós mesmos hoje por convicção ou pelo constante comportamento de manada. Somos tantos e só vamos longe quando não sozinhos e quando aprendemos a conviver.

Não é tolerar, aceitar e sim conviver. Tratar o outro como igual. Tolerar é algo que fazemos para manter as aparências. É hipócrita. Aceitar? Como em eu aceito você como amigo ou eu aceito quem você é? Acredito que apesar de julgados o tempo todo não vivemos em um tribunal e se quiser ter um amanhã melhor que hoje precisamos da convivência.


Convivência e brilhar junto com aquelas estrelas que se destacam mesmo com tanta luz da cidade. Viveremos mais se trabalhar a ansiedade e descobrirmos a melhor maneira de nos tratarmos nos dois sentidos. Como nos dirigirmos uns aos outros e a nós mesmos. Afinal, viver contrariado e contrariando é apagar a estrela brilhando em nós mesmos. Vamos brilhar, por favor.

sexta-feira, julho 25, 2014

janela intensa (miniconto) – por Rafael Belo







Para quê portas e vidros nas janelas? Nem teto era preciso. O acesso a paisagem proporcionava mais conforto e uma alegria inexplicável em Marco Mil. Cada cor chamava um amigo a sua mente e ele viajava na lembrança. Nunca perdera contato com nenhum, às vezes acontecia da distância e o tempo se intrometerem, mas bastava se encontrarem e ambas as relatividades jamais tinham existido.

Era encontrá-los e as afinidades se afloravam. Nada parecia ter mudado da última conversa e ela continuava do mesmo ponto. Mas, Marco estava mais ausente no último ano. Pouco revelou de si para seus amigos e entre muito menos em contato. Todos desconfiaram e começaram a combinar uma surpresa coletiva.

Olhando pela janela e sentindo aquela inestimável força do que via e era visto, Marco não percebeu quando dormiu. Estava tão cansado de todas as escolhas erradas e as consequências desastrosas que o deixaram sozinho e sem condições de terminar seu único bem. Estava na casa própria há alguns dias e já precisava tomar banho. Passou cada dia da última semana em claro. Não seria fácil de acordar. Seus amigos haviam descoberto tudo e chegaram preparados para erguê-lo.


Quando acordou o mutirão de amigos tinha terminado a casa e ao redor de Mil estavam todos eles esgotados. Dormiam todos profundamente. Passaram 24 horas aceleradas. Até pintaram a casa. Mas, também não eram todas as pessoas que tinham tantos amigos e pelo menos 20 na área da construção. Cada um deles era parte da janela de Marco e ele nunca deixava de olhar por ela. Agora não parava de olhar para eles e ter uma alegria ainda mais intensa.

quinta-feira, julho 24, 2014

verso amigo





os melhores amigos do poeta são os versos
que se vão ainda sãos sem jamais voltar a pertencer ao criador
é da criatura inspirador e cada figura humana se torna suas rimas,
nem melhores nem piores, são autoestima

o riso poético da alma perceptiva e o sintético detalhe da vida
ativa em cada vírgula e reticência em busca de um ponto final
sinal da interpretação original apropriada pelas amizades rebuscadas
na sustentação guardada pelo equilíbrio entre a solidão requisitada e a confirmada presença

antigo abrigo da essência dos passos seguintes
amigos ouvintes, ombros e mãos, poesia de todas as situações.


(às 20h27, quarta-feira, 23 de julho de 2014, Rafael Belo)

quarta-feira, julho 23, 2014

Intervenção (miniconto) – Rafael Belo









O entardecer trazia a noite para o chão e as cores para o céu. Por enquanto tudo ainda estava azul. Mas, Madalena iria borrar toda a maquiagem do dia. Escorreriam marcas pretas por toda sua face e incontrolavelmente isto seria controlado por todo trajeto. Mesmo com tantos amigos e família ela não cederia.

Madalena queria o Reino indo até ela, ela não iria ao Reino. Então, não havia paz. Ela mancava por todo seu calvário porque não tirava o salto por nada. No auge dos seus 16 anos, tinha corpo de 30, mas sua mentalidade prevalecia lá pelos 12 e, às vezes, empacava pela incansável birra dos cincos anos. Saltitante e irritante idade. O problema é que ela e metade da humanidade eram assim.

Aliás, ela sofria até em casa. Não queria ouvir ninguém e dolorosamente acusava os mais íntimos amigos de traidores e distantes. Madalena misturava suas realidades com sua mente confusa e soltava injustiças através dos meios disponíveis. No momento se sentia rejeitada e dores no coração. Estas a faziam esquecer suas incuráveis dores crônicas.


Madalena sofria de fibromialgia aguda e dava soluços agudos no meio de suas densas lágrimas. Sua expressão era grave e seus amigos tentavam sustentar aquele fio de vida tenso no qual ela caminhava. Madalena não esperava tantas conversas sobre ela. Só soube durante a intervenção. Cada dia um amigo passava o dia com ela e lembrava de quem era Madalena. Juntos lembravam do valor, da nobreza e da beleza que a amizade pinta a vida.

terça-feira, julho 22, 2014

fim do infinito






vestir ares de importância despe a intolerância das dores de cabeça, adormeça e alvoreça onde menos é mais da beira do cais até o fim do infinito/ o tremular de um agito, no mito da casualidade como se aparência e intuição fossem certeza, leviandade, perde-se a leveza de não ser leitor de mentes nem dono de especulações, feições, inteiro se fazendo metade, esvai-se a essência da amizade e morre um imaginado amigo, amigos imaginários se vão pelos vãos do que não é verdade, Felicidade é diária no diário da simplicidade, repleta de detalhes, entalhes à mão onde se faz preenchimento no coração da cavidade e a paz invade.


(às 12h08, segunda-feira, 21 de julho de 2014, Rafael Belo).

segunda-feira, julho 21, 2014

Amizade e guerra – por Rafael Belo






Se não for nobre nem valioso não é amizade. Aliás, quem sobrevive em sã consciência sem amigos? Ontem (20), foi Dia do Amigo curiosamente a data é referente ao dia em que o homem pisou na lua neste mesmo dia em 1969.  Nosso Hermano argentino, o médico Enrique Ernesto Febbraro, achou tão imensa a chegada do homem à lua que disse:  "um feito que demonstra que se o homem se unir com seus semelhantes, não há objetivos impossíveis”. Enrique enviou 4 mil cartas para instituir a data.

Ele queria reforçar que quem tem amigos alcança o impossível. Por isso, nunca é demais celebrar o sentimento de amizade. Outra data comemorada pertinho. O Dia da Amizade surgiu dia 30 de setembro de 1958, pelo também médico e hermano, o paraguaio Ramón Artemio Bracho. Na época ele realizou a Cruzada Mundial da Amizade. O intuito era valorizar e destacar este nobre sentimento e assim disseminar a paz.

Promover a paz e a amizade é elevar a alma, dar continuidade e mais significado/significância a vida. É saber sempre ter com quem contar e apesar de tudo viver. Por isso dados de mortes no Brasil assustam. Ainda mais quando vêm acompanhados das palavras família e amigos. São cerca de 150 pessoas assassinadas por dia, de acordo com dados da ONU (Organização das Nações Unidas). No ano passado o ministro da Cidades,  Aguinaldo Ribeiro, destacou que 140 pessoas morrem por dia no trânsito.

Somando os dados são cerca de 300 mortes diárias no Brasil. Enquanto um recorte da guerra entre Palestina e Israel dá um balanço de cerca de 350 pessoas mortas em 13 dias. Lá israelenses e árabes estão em confronto há milênios, mas desde 1867 quando o Sionismo, o ideal judaico do retorno a terra dos seus antepassados, junto com a iniciativa britânica chamada de Declaração de Balfour, deram ao povo judeu direitos próprios de um povo, então eles foram em busca da terra prometida.


A Cisjordânia e a Faixa do Gaza são reivindicados por antigas questões históricas, culturais e religiosas de ambos os povos. Complexa demais para um recorte telejornalístico global. Braco e Febbraro querem o que todos nós queremos ou deveríamos querer: Estimular a paz e a amizade entre seres humanos, entre irmãos, se não por princípios pela religião, pela qualidade da/de vida e da alma e pela sobrevivência do mundo. Seriam muito mais simples e nobres como juntar os furos de um tijolo para dar moradia a quem precisa e a própria fortaleza.

sexta-feira, julho 18, 2014

invasão (miniconto) – por Rafael Belo








Por mais que o procurassem era preciso se perder nos olhos dele para seguir os rastros das formigas e se esgueirar pela rachadura na sua parede externa. Fariseu Fenda vivia em vários lugares ao mesmo tempo e se sentia cotidiano demais. Preso como se seu diariamente precisasse descer e subir todos os degraus do mundo, seu mundo, aliás mundo bem dele.

Sua mente era sua janela e ele amava estar ali. Não só debruçado, mas mudando de posição. Fenda sentava e balançava os pés, porém quando pulava se descobria cada vez mais. Como se houvesse vários Fariseus caindo em uma Fenda. Pareciam seus neurônios aquelas formigas conversando na parede criando o odor da informação e textos para expressão.

Ele sabia do medo das pessoas de dizerem algo e serem julgados pelo dito, escreverem algo e serem julgados pelo escrito. Fariseu Fenda havia aberto um buraco e enterrado seu medo disto. Ele olhava nos olhos das pessoas e deixava que elas se perdessem em seus olhar, pois assim ele as encontraria. Decidiu trazer suas janela para fora.


Quando percebeu que não morreria, tentou ir o mais distante possível e hoje ninguém o alcança mais. Pulou sua janela e a trouxe para fora passando por ela constantemente. Ao mesmo tempo a janela era a mesma e era diferente. Um velho mundo com o novo dele. Fariseu Fenda criava seu espaço e todos percebiam que o espaço dele invadia todos os limites e eles eram invadidos também. E aquela fenda nele era um formigueiro ampliando seus ninhos.

quinta-feira, julho 17, 2014

sem foco







abaixo da terra, abria a janela
para a imagem desolada pintada no espelho
a um toque, a um dobrar dos joelhos
o rasgar da razão a luz de uma vela

reflexos e movimentos anulados pelo cerebelo
destruindo o equilíbrio da tela
confundido todo o não escrito enredo
enfiando o cotidiano atravessado na goela

pequena flor gela toda a delicadeza em recorte
da falsa morte revela medo e desfoque.


(às 23h12, quarta-feira, 16 de julho de 2014, Rafael Belo)

quarta-feira, julho 16, 2014

declamará (miniconto) – por Rafael Belo









Ela acordava todo dia da mesma forma e inconvenientemente com o mesmo pensamento. Só não era de todo inconveniente porque... Bem ela não se lembrava. Amélia Jéssica passava pelas mesmas coisas diariamente, a diferença para ela era sempre ser novidade. Instintivamente ela não usava verbos no passado ou no futuro, às vezes nem no presente.

Podia sorrir comumente e estava presente. Naquele momento Amélia Jéssica nem conseguiria ser outra. Era ela, era agora. Fazia suas higienes, se alimentava, acessa o mundo virtual, confeccionava seu trabalho ali mesmo e o envia a quantos veículos pedissem. Repetia os dois primeiros invertendo as ordens e dormia. Ah, adorava passar seus momentos de folga viajando por meio daquela janela.

Não importava o tempo emprestado a ela pela janela. Amélia Jéssica conseguia sempre enxergar o sol. Podia ser inverno, outono, primavera e Amélia ainda assim enxergava o verão em tudo, por mais que preferisse o silêncio e a profundidade do inverno. Não o inverno brasileiro só de frio, quando o era. O europeu com muita neve, por mais que nunca tivesse passado por ele ou ela.


Amélia estava em coma há quase três décadas e nestes 30 anos quem ainda a conhecia morreu, quem era da família a esqueceu. Amigos e familiares ela fazia no cotidiano permitido pela sua memória. Era como viver em um Silo de centenas de compartimentos separados por profundidade de andar. Enterrada em si mesmo era feliz e apesar de acordar todo dia sorrindo ela não estava presente no próprio futuro.


terça-feira, julho 15, 2014

famintos




se foi a caverna ficou sua enorme sombra
na nossa face contrariada imitando tromba
nossas raízes longas, só nos mantêm enterrados
soterrados de regras na destruição do legado

desolado deserto dividido na nossa confinação
presos de dia e soltos à noite, proteção
sussurrando com os olhos na janela

vendo o dia começar e terminar, tagarela
repetindo as sombras da caverna, imitação
cães caçados, instinto faminto, aceitação,
sem freio na banguela, simulação.


(às 18h18, segunda-feira, Rafael Belo, 14 de julho de 2014).

segunda-feira, julho 14, 2014

Embaçando o vidro da verdade (resenha do livro Silo) - por Rafael Belo



A maior caverna do mundo é uma sombra do passado. Estamos confinados a uma paisagem desolada, desértica e mortal. Somos um legado ignorante da destruição causada por nós mesmos. Não podemos sair, não podemos respirar, mas estamos acostumados e isto tudo parece o paraíso, mesmo se estivermos enterrados. Filosoficamente até poderia ser assim nossa vida hoje.

Mas esta é a vida no Silo. Estamos armazenados na ignorância e nos tornamos níveis enterrados na terra. Não questionamos, apenas exercemos nosso trabalho, comemos, dormimos e seguimos as regras. Mas, há Juliette e Lukas e antes deles a prefeita Jahns, o delegado Marnes, o xerife Holston e Allison em 144 andares subterrâneos de aceitação ou limpeza.

O livro é voraz e a Intrínseca acerta mais uma vez ao transformar o fenômeno dos e-books em físico. Hugh Howey dá velocidade a trama e vamos nos corroendo ao mesmo tempo em que o fôlego se perde em algum andar a exercitar nosso cérebro descendo e subindo as escadas. Vamos no ritmo acelerando e em rápida evolução à espera dos outros dois. Sim. É uma trilogia.

Aceitar o feijão com arroz diário, hastear o ato político de virar as costas à política e intuir que a vida é assim, as pessoas não mudam... Dá o aval, nossa assinatura para que sejamos “manipulados”, que tomem decisões por nós. É assim que acabamos enterrados repetindo nossas ações diariamente seguindo regras que nem sabemos porque existem e de repente estamos mortos. É este o mundo distópico imaginado por Howey, mas está embaçando o vidro da verdade.


Silo

Em uma paisagem destruída e hostil, em um futuro ao qual poucos tiveram o azar de sobreviver, uma comunidade resiste, confinada em um gigantesco silo subterrâneo.
Lá dentro, mulheres e homens vivem enclausurados, sob regulamentos estritos, cercados por segredos e mentiras.
Para continuar ali, eles precisam seguir as regras, mas há quem se recuse a fazer isso.

Essas pessoas são as que ousam sonhar e ter esperança, e que contagiam os outros com seu otimismo.

sexta-feira, julho 11, 2014

Rachaduras (miniconto) – por Rafael Belo










Não reconhecia nada e estava muito quente. Tudo se movimentava a girar e girava. Ele tinha certeza que aquele João-de-Barro o observava com um brilho de reconhecimento no olhar. Mas, espera como foi parar ali? ... Algo a ver com rachaduras. Não! Silvio Silva se levantou de imediato olhando obsessivamente ao redor.

O pássaro nem se mexeu. O encarava sobre sua asa esquerda fechada. Seu olhar atravessava o mato alto, mas amassado. Local exato onde Silvio despertou. Ele percebeu a força do olhar do pássaro não era só reconhecimento, havia mais naquele olhar do que ele podia encarar. Era uma ação prestes a acontecer. Uma reação...

Silvio vasculhava os escombros e as aves o vasculhavam. Os escombros do lugar que um dia foi seu lar, os destroços que um dia o foram. As aves iam se amontoando como se o barro ganhasse vida. Havia chovido no dia anterior não muito, mas o suficiente para molhar o chão batido e o revirar. Agora eram milhares de Joãos o reconhecendo e culpando do mesmo jeito, com o mesmo olhar.


Ouviu uma revoada e seu coração pareceu correr. Temia algo que só seu íntimo sabia. Silvio também estava repleto de rachaduras. A cada bater de asas ele se sentia rachar. A fissura vinha do chão e parecia o atravessar até ganhar o vazio. Ele não iria escapar. Quando todos os pássaros bateram as asas, Silvio tinha certeza que já não era nada. Milhares de João-de-Barro o levavam no bico de volta para o barro, de volta para casa.

quinta-feira, julho 10, 2014

Semblante













olhos vidrados no tempo virado na cadeira
corpo torcido nunca ereto ao estar constantemente sentado
coluna retorcida sem se equilibrar a um palmo da fronteira
imagens clonadas, palavras repetidas em bocados

morte e vida equilibradas por um distúrbio
absurdos marcados no interno subúrbio

enterrado na nossa superfície mais rasa
no desequilíbrio confundindo trabalho e casa

enrijecida no cadavérico estado ambulante
antes e depois são agora, o pó aviltante de recuos adiante.


(Às 23h13, Rafael Belo, quarta-feira, 09 de julho de 2014)

quarta-feira, julho 09, 2014

Jornada (miniconto) – por Rafael Belo







Havia tantos ângulos para olhar e ela não queria esquecer nenhum. Imaginava-se enquadrando as imagens. Os indicadores e polegares estendidos formando 90° em quadrados e retângulos. Ora a mão direita em cima, ora a mão esquerda... Depois de um tempo visualizava fotos em qualquer imagem. Pessoas, paisagem tudo dava vontade de registrar e Eliana Capta já nem erguia mais as mãos, mas se perdia em seu olhar fixo às vezes longe, outras perto torcendo e se retorcendo em seus subterrâneos.

Já tentou repetidas vezes a mesma cena e cada imagem era outra sendo repetição. Tantos detalhes, tantas palavras... A vida de Eliana era ela e a máquina digital. Três vezes quase foi enterrada viva. Eliana tinha uma rara catalepsia patológica. Seu corpo poderia ficar dias com um funcionamento tão mínimo e rijo, que nem a morte entrava em um estado cadavérico tão bom.

Se a morte não fazia tão bem, Eliana era a melhor, mas só trabalhava quando e como queria. Gostava de torcer com o olhar para a foto ser a melhor da vida dela e torcia assim por cada uma. Conseguia que saíssem como imaginava, como enxergava de seus subterrâneos. Eliana se misturava tanto aos locais que perdia a identidade, ela reconhecia a imagem a imagem a reconhecia.


Mas ninguém reconhecia a raridade de usa rara doença. Em sua quarta e última crise de catalepsia, a denominação judaica de Eliana ajudaria a ela alcançar o paraíso, quem sabe nas etapas até lá registraria o impossível. Ela estava nas reservas ambientais quando em meio a um grupo teve a crise e o Judaísmo não permite autopsia. Eliana foi direto para o inferno o que significa que seu corpo voltaria ao pó e sua alma sofreria e alcançaria o céu quando fosse o tempo. Enquanto isso, registraria uma nova jornada.

terça-feira, julho 08, 2014

Subterrâneo











calmamente esfria o indigente
cascas rachadas de corpos
pele sobre pele de músculos inteligentes
estremecendo incendiários sarcófagos

notícias vazias socialmente
sinceramente torcendo antigos exóticos

resfriados automedicados sutilmente

por vagos distorcidos propósitos
no liquidificador resolvido no ouvido sem identidade

criando sentimentos abismos depósitos, sentimentalidades, humanos distópicos.


(Às 22h04, Rafael Belo, segunda-feira, 07 de julho de 2014)

segunda-feira, julho 07, 2014

Torcer – por Rafael Belo






Torcemos. Gostamos. Esperamos aliviar nossas tensões e nos divertir. Mas dias e dias exaustivamente um mutirão de notícias apenas sobre violência e agressão no futebol nos invade. Todos os ângulos de uma mordida e depois todas as dores, choros e solidariedade diante de outro atacante, mas ao invés de atacar como o mordedor uruguaio, atacado. Lesionado na lombar. A fratura doeu em todos, mas é cansativa nossa cobertura insistente. Tudo passa, mas às vezes demora a passar. Palavras do próprio pescoço de Neymar.

Nunca antes na história deste país se soube tanto sobre estrelas do futebol, mordeduras e, claro, sobra a 3ª vértebra da lombar. Também quanta vezes a mordida de Suárez no italiano Chiellini foi repetida? Não tanto quanto a joelhada do colombiano Zuñiga no craque Neymar. Aliás, milhares de pessoas começaram a seguir o perfil do jogador no twitter, entre elas centenas de famosos brasileiros... Enfim, o ano já vai acabar. Não? Veja bem, acaba a Copa e oficialmente começam as Eleições 2014 que vão até outubro... Então temos um mês e o festivo dezembro. Por isso, é digna de muitas histórias o caso do morto e seus três funerais.

Chega um momento em que ninguém identifica ninguém, nem a si mesmo, mas ter um corpo velado três vezes e depois devolvido ao IML rodando quase 400 km é surreal. Primeiro ele deixou de ser indigente para ser Antônio, mas antes foi retirado do IML de São José do Rio Preto onde ficou por três dias. Em Icém, o corpo de Antônio, cerca de 65 anos e aproximadamente 1,60 m, sem documentos, gerou desconfiança dentro do caixão fechado. Então, encontraram o verdadeiro Antônio vivo e este foi registrado no celular em vídeo. O corpo voltou a ser indigente e ao IML e logo virou Eduardo, 75 anos, cerca de 1,60 m, sem documentos. Estava sendo velado em Bebedouro quando chegou o resultado do exame provando não ser Eduardo. O corpo voltou a ser indigente.


Só então, tiraram as impressões digitais e o indigente se tornou Lourenço. Horas antes estava prestes a ser enterrado como indigente. A família ficou sabendo pela televisão e Lourenço passou a ser Lourenço e ter 73 anos, 1,60 m, identificado. Quase enterrado como ninguém, a família reclamou o corpo, o identificou e as impressões digitais confirmaram. Foram 14 dias para ser enterrado, o que aconteceu na última sexta-feira (4), dia do jogo do Brasil. Torcemos para ser sempre alguém com muitos torcendo por nós.

sexta-feira, julho 04, 2014

esvazia o vazio (miniconto) – Rafael Belo









Se fosse apostar diria que estavam todos mortos, mas sabia que era uma aposta errada. Os moradores daquela rua deveriam estar dormindo ou resolveram todos abandonar as casas de uma vez. Dava medo. Ele tremia da cabeça aos pés. Parecia o segredo revelado do liquidificador. Ele olhava para o vazio daquela rua vazia e tremia ainda mais. Chacoalhava tanto, mas tanto... Não conseguia raciocinar. O irracional medo não permitia. Estava se sentindo consumido, agredido por aquela noite sem fim.

O horizonte queria clarear. O sol forçava sua entrada, mas havia outra força ainda maior tentando permanecer naquela fria escuridão. Aquele dia não queria terminar e havia um impasse. Elias sentia que não queria saber. Seu relógio estava parado. Seu carro dera uma inexplicável pane geral. Algo dizia que Elias deveria reconhecer aquele lugar. Mas ele fazia um tremendo esforço para não se lembrar e tremia de uma maneira extrema. Um tipo de tremor ainda não identifica-lo e pela experiência de Elias, coisas raras não eram boas.

Havia uma luz tênue. Tão sem proposito que parecia parte da paisagem, mas não na frente daquela casa, cuja sensação a lhe passar era totalmente desagradável. Tudo ali era ostensivamente mal iluminado e parecia haver mais mal por aí. Mas ele sabia ser bobagens o que sentia pairar era ódio, abandono e confusão. Foi forçado a entrar naquele lugar. Uma casa vazia. Estava morta. Mas Elias ouvia sons e os procurava no celular. Via luzes e elas estavam apagadas. Seu corpo inteiro era arrepio e ainda não era de frio. Havia muita adrenalina para tanto. Estava incontrolável. Tremendo e rígido ao mesmo tempo. Tinha certeza que o silêncio deveria imperar ali como lá fora e não era assim...

Nem sequer uma brisa se mexia. Estava tudo frio e parado. Elias calculava que sentia o frio de cerca de 10°. Tentou não se desesperar ao perceber estar na casa de três gerações mortas totalizando quatro pessoas. Ele reconhecia. Ele não as via, não acreditava nelas, mas não importava... Elas estavam ali sussurrando. Elas acreditavam em si e queriam acreditar nele. Estava tão arrepiado que sua pele parecia um escudo medieval de bronze. Sentia uma força chama-lo mas ele queria tanto não entender que não entendia. Sentia mãos tentando puxá-lo.


Quis parecer calmo e se forçou a se controlar e não tremer. Mas, ondas de arrepios misturavam seus sentidos. Ele acelerou os passos até a porta. Fechou a porta. Sem olhar para trás em nenhuma destas ações. Só quando estava no corredor, quase na rua soube o motivo de não olhar. Se olhasse entregaria seu corpo a alma e seria levado por aquela força vazia do vazio. Percebeu estar anoitecendo novamente. Viu o porto, o mar e as últimas manchas solares sobre as montanhas. Agora estava bem e se não estivesse não queria saber.

quinta-feira, julho 03, 2014

frio suor




















olha o céu seus solares selos
sentindo-se seres similares
sedados serenamente sobre segredos
sobrevoando pela beleza do frio saciado de milhares
salivando sacrifícios somados, sacolejos
bagunçado entre o gratuito ato de populares

singulares gestos polares na mancha solar
pintando o celeste olhar, na tremedeira da pele nua

negra neve derretendo no ar

naquele congelante frio que soa sua.




(às 19h31, Rafael Belo, quarta-feira, 02 de julho de 2014)

quarta-feira, julho 02, 2014

Parada (miniconto) – por Rafael Belo









Sem chaves, na friagem e o sereno ainda derrubava mais alguns graus acompanhado dos fortes ventos a mais de 60 km/hora. Todos tinham abandonado as casas e se reunido no único lugar onde havia aquecimento interno. Estavam no aquário municipal. Aliás, quase todos, Ariela não queria nenhum calor humano, nenhuma pergunta impertinente, muito menos saber desta gente da cidade. Até aquele instante quando percebeu a verdade. Cada palavra dita estava acontecendo. Ela estava congelando e viu o frio levar com o sopro a vida de trapos na rua tão humanos...


Agora não era possível enxergar nem as próprias mãos. Uma densa neblina engolia a cidade e a dissolvia em nada. Dois dos três tropeços de Ariela a tinham levado com o rosto em mortos. Congelados. Ela os conhecia. Além do medo e do frio, Ariela tremia de dor e angústia. Tinha de lidar com sua escolha e talvez morresse do insuportável sofrimento ao invés de frio, aliás hipotermia. Sua pela já estava ficando azulada, mas Ariela não enxergava. Estava ficando insensível como sempre quis ser.


Parecia um reinício. Reinício do fim.  Nada da escuridão. Não havia absorção. Aquela brancura era reflexão. Estava tão densa, tão viva e matava. O que mais matava Ariela era a falta de sincronia. Suas coisas aconteciam quando ela não queria mais. Por que iria morrer? Tanta gente melhor para estar morta e vivia. Se tivesse avisado que vinha... Se não tivesse esgueirado por toda parte permanecendo ausente daquele lugar, daquela cidade... E era esta mesma a devora-la, a mastiga-la lentamente, saboreando...

Ninguém sabia dela há anos. Ariela virou às costas aos pais, a toda a cidade que a tinha como querida e foi estudar. Na Capital pôde se despir. A sua arrogância pairava dos olhos a boca e sua frieza a fez se sentir rejeitada. Aguentou muito tempo em silêncio. Depois foi espreitar para ver como voltaria. Quais formas permitiriam a ela dominar esta cidadezinha, mais com cara de vila. Dividir, conquistar, destruir...


O próximo passo... O próximo passo de Ariela foi dentro da lagoa turística ao mesmo tempo que mais dez graus derrubavam a temperatura para muitos negativos. Congelada ela pôde ver pela última vez, um sorriso naquele inseto a encarando. Ariela pensava por que ele está... E tudo ficou parado.

terça-feira, julho 01, 2014

friagem














faz frio flamejante no instante do brilho no olhar deitar a visão no vão
passagem permanente pelos pés pastando na friagem fixa, farejando fugazes fulguras figurantes

derrapantes danças desconexas dos pajés
ruidosos rastros rareando as serpentes dançando
a hipnose entrementes infiltrando, adestrada, saindo sobressaída saraivada, subtraída substância sacolejada

para manter acordada a ancorada alva temperatura soprada para a memória apagada nas cinzas, da frieza acumulada da brisa, queimada ao vento, no ressentimento rindo rostos rosados realizados realmente, na realidade recortada... No sobrevivente.


(às 21h57, Rafael Belo, segunda-feira, 30 de junho de 2014).