sexta-feira, dezembro 16, 2016

Mundo mudo (miniconto)




por Rafael Belo

Nenhuma resposta audível nem gestos, só o silêncio. Mas, por dentro Lumi iluminava, tagarelava, cantava, criava, talvez não haja nenhum registro de uma inteligência como a dela. Porém, ela não desejava interagir ou mostrar para alguém todas suas criações. Lumi guardava tudo, ou melhor, escondia. Era segredo sua real personalidade. Ela não é quem finge ser. Lumi não fala de passado ou de presente. Para o mundo é muda. Nem mesmo os pais sabem, ainda que os médicos garantam ser psicológico o motivo da mudez, eles não admitem ter uma filha “louca”. “Meu Deus, não!”. Era melhor a mudez.

Eles tinham medo dela e a deixavam só com os pensamentos de Lumi. O combinado silencioso era ótimo para ela. Ela subia no último quarto, do último canto da casa onde somente ela tinha acesso e apagava o mundo. Não, não. Nada disso, ela iluminava o mundo com poesia, romances, composições, com a própria voz e aquelas saindo dos instrumentos musicais, pinturas, coreografia... Ela se bastava. Não, não é verdade. Não havia única alma capaz de imaginar tanto talento acumulados em um só ser. Mas, Lumi não se permitia sofrer.

Lumi acha um desperdício conversar quando pode ouvir e mostrar arte, artes mais precisamente. Lumi não é uma só, é incontáveis. Por isso, não é justo a acusar de não ser a própria real personalidade. Ela o é em parte. Uma parte precisamente precária. É o pior dela porque ele pensa ser isso que as pessoas merecem. Só dá para o mundo indiferença e é indiferente com as pessoas. Não faz diferença para ela. Bem... Ela vive repetindo não fazer. Mas, talvez seja verdade ela não tem simpatia e nenhuma empatia. Não é possível saber. Ela é totalmente isolada.


Nada é irremovível. Nada é constante. Houve um tempo no qual Lumi era livre, especulativamente falando. Todos os registros dos cinco anos dela foram apagados. Lumi compunha as próprias músicas e esperava a reação espantada das pessoas e, no início, maravilhadas, mas logo deixavam de achar uma gracinha para “como é possível”, “que criança esquisita”, “ninguém a força?”... Era destruidor para a pequena Lumi que hora via seus pais explorarem esta peculiaridade dela, hora babarem de alegria e hora temerem. Ela desde então, nada faz em público. Até neste momento que chega sua prima, muito parecida com ela e se encaminha – sem ninguém ver – até o quarto secreto de Lumi.

quinta-feira, dezembro 15, 2016

previsão



rasga o solo infértil comunidade de brotos
tortos para seguir a própria reta na meta de florescer
crescer até no asfalto quente ilustre indigente contracorrente frio aquecer

efervescer no ar enquanto a chuva cai fazendo curva em cada esquina
é música agridoce sina do destino aglutina a contramão desconstrói

voa o herói pela cidade de brinquedo se molha no espelho esquece a pressa

conversa com o cosmos Cristovãos Colombo Buarque Deus lhe ache a arte
pague apague cinza chumbo chuvoso tarde o universo hamornioso
estrela luminoso nos olhos do artista a Alma revolucionista da criação

há flores até onde não se vê o futuro não se prevê é previsto no coração.


(às 11h44, Rafael Belo, quinta-feira, 15 de dezembro de 2016).

quarta-feira, dezembro 14, 2016

Os atraídos (miniconto)




por Rafael Belo

Zumbem os insetos e emitem todas as onomatopeias próprias deles. Até pararem para escutar, mas não se aproximam enquanto as pessoas se aglomeram. Há um respeitoso silêncio entre elas envolvidas pela música tocada. A flauta de Hamelin está pendurada no meio do ambiente, ninguém ousa tocar, ninguém ousa falar, ninguém ousa cantar, mas todos querem. Ratos e crianças desaparecem neste instante e o prometido não é pago. Os instrumentos do lugar também hipnotizam com os músicos elevando as almas para os dedos, os pés e vozes.

Há amplificadores por toda parte e a cidade não emite nada. Cessou o vento, nada mecânico funciona nem elétrico ou tecnológico, exceto no bar para onde estão todos indo silenciosamente. Quem tocava era a última banda já ouvida neste país com violão, guitarra, baixo, bateria, percussão, sax, trompete, flauta, tuba, violino, violoncelo, piano, contrabaixo, viola, sanfona, triangulo e zabumba. Todos também eram voz, mas a verdade é que 1% das pessoas estava chegando, o restante não conseguia sair de casa. Zumbiam e emitam todas as onomatopeias próprias delas.

Zombem se quiserem... Vocês já perceberam a ausência de alguém? Aquele alguém na contramão do cotidiano? Já sim! Pode confirmar! Elas são como lâmpadas sem apagar jamais. Luzes no caminho iluminando os passos. Sóis nos despertando, nos amanhecendo novos e exultantes. Atraem a todos e os fazem crescer emocionalmente, espiritualmente, mas só crescem mesmo com seus iguais. Sem saberem simular era O instrumento no momento. A Banda atraia no momento artistas que são a famosa Alma dos lugares, das famílias, dos amigos e da cidade.

Os atraídos tinham lido A Revolta de Atlas (Who is John Galt?) e sentiam que algo assim aconteceria. O tal do “algo me dizia...”, mas nenhum deles era filósofo nem gostava de ser rotulado como homem de razão. Eles preferiam serem tachados de loucos e taxados por isso, enquanto os verdadeiros donos da loucura permaneciam achando serem donos de algo. Está quase amanhecendo e os atraídos seguiram A Banda até o estádio encantados pela música que queriam cantar, mas não cantavam. Não se sabe ao certo quantos são, mas está tudo realmente vazio agora. Ao amanhecer só havia desaparecimento e coletivos de silêncios.

terça-feira, dezembro 13, 2016

Pessoas (con)julgadas



 há uma luz pairando no ambiente a gente a sente ela sente a gente
é uma corrente livre soprando para longe tudo que dói
convoca às artes cada um dos nossos heróis
mártires diários da vida atrevida fiando a corda que a gente rói

quantos sóis nascerão em nós até entendermos nossa alma pura?

apura o olfato atenta os ouvidos feche os olhos morda os lábios sinta na pele
sele coração cele vento se eleve quanto leve liberte lentamente o selo rompido
quando a música se revelar cante há músicos a nos brindar com um implante a coçar
está no ar acariciando atrás da orelha traz o infinito do encontro com o horizonte e o mar

a cela psicológica não tem mais lógica solte o vento vá voando junto
até a terceira pessoa passar para segunda e ser primeira eu nada serei tudo.


(às 12h31, Rafael Belo, terça-feira, 13 de dezembro de 2016)

segunda-feira, dezembro 12, 2016

Heróis das artes



por Rafael Belo

Começa a música e todos se iluminam. Cada um lembra-se de um momento, cada um canta como se estivesse no palco e esta fosse a vida. Não tem valor. As pessoas se unem em uníssono e naquele momento somos um. O poder atômico de cada canção reconstrói mundos, conecta pensamentos e eleva o indivíduo a um coletivo sorridente e compartilhado, mas o lado b não é bonito. A valorização dos músicos sobrevivendo da música e da boa energia do público é gratificante, é energizante, eleva uma satisfação flutuante, porém é praticamente inexistente.

Há bares aos montes por aí. Por onde passamos há um local para diversão, entretenimento e música boa, mas as pessoas e os donos destes lugares “esquecem” que é uma profissão. Quanto tempo dedicado para estudar e aprender um instrumento, para afinar a voz, para chegar ao tom, as notas, aquela cadência, aquele ritmo, naquela quase perfeição foi necessário - e ainda é - para criar um repertório, para ficar no mínimo satisfatório para o público? Este tempo não tem limite porque a cultura não tem limite e mesmo sendo inestimável o valor, nem 1/3 do salário mínimo é repassado para estes artistas.

Eles sobrevivem trabalhando o máximo possível em três, quatro, cinco, inúmeros palcos por dia e estou falando apenas dos músicos. Imagine a situação da dança, das artes plásticas, do teatro... É uma roleta russa da negociação diária de um cachê, do amor-próprio, do amor pela arte e ainda assim vestir o melhor sorriso, dar o melhor da alma e do coração para pelo menos alimentar estes, enriquecer estes com mais sorrisos, com agradecimentos e abraços. É o mínimo do reconhecimento em um mundo frio e capitalista... Receber calor e incentivo para que o desânimo não tome conta porque ele também não vai pagar as contas.


Os heróis das artes com os dons brilhando nos olhos das pessoas estão aqui para iluminar, mostrar os dons da criação desta aliança entre impalpável, mente, alma e coração. São nossos ídolos fomentando em nós o desejo de sucesso deles criando esta ponte entre o palco e nossos sonhos. Eles nos ajudam a acreditar. Inspirados inspiram nossas inspirações e nos dão aquela vontade de viver mais intensamente. Os artistas do nosso mundo pagam diariamente o preço da escolha que fizeram e nos dão a coragem de escolher o que nos faz bem, mesmo sendo obrigados a acertarem as multas injustas, às vezes com a alma, a música não pode parar. 

sexta-feira, dezembro 09, 2016

Dominação total (miniconto)




por Rafael Belo

A cidade toda acumulava mortalhas. Era uma forma de lembrar não só obviamente seus mortos, mas o peso jogado na vida. Os verdadeiros donos da situação eram ovelhas deficientes deformadas pelos absurdos cometidos livremente pelos seus representantes, estes seriam um bando de porcos orwellianos, mas George Orwell soltaria seus bichos revoltados sobre nós se fizéssemos tal comparação. Então, naquela manhã uma mortalha diferente foi proposta e aprovada por unanimidade com a presença da população. Havia tanto cansaço nos enganados que os enganadores já não tinham mais vergonha.

As mortalhas não vestiriam mais os corpos reprimidos a partir daquele momento. Todos usariam mortalhas adaptadas e a primeira tinha obrigatoriedade imediata de utilização. Funcionários terceirizados já estavam à postos com vendas de pressão feitas de malha de aço medieval. Era como vestir fibras de aço nos olhos e só quem era responsável por vesti-las nos cidadãos sabia a combinação para retirá-las. Sem nem ver o que os atingia o mundo já era tingido de escuridão novamente. Ninguém mais saberia dizer como era a própria imagem.

Aquele peso no olhar esvaziou as ruas. Apenas os porcos, digo, os representantes daqueles cidadãos eram vistos e viam. Claro, que até aquele momento fatídico, todos cometiam suas pequenas corrupções nem que fosse para chegar mais rápido no sinal fechado... Mas, as privações nunca haviam afetado tão diretamente um órgão humano. Estavam todos depressivos e não saiam de casa. Não havia sequer vontade de levantar da cama. O assalto descarado da cidadania era a violenta consequência de várias ausências daquelas pessoas.


Ver apenas a escuridão se tornou um costume como a depressão. As notícias adulteradas tinham o cuidado de chegar ao mundo sem falar da política, sem se vangloriar de nada, mas havia palavras cifradas incitando todos os demais a tramar as privações dos sentidos da sociedade. Em pouco tempo, as mortalhas se espalharam como praga. Não era mais uma cidade cega, agora havia cidades surdas, cidades mudas, cidades inodoras, cidades paraplégicas, cidades tetraplégicas e todo o povo que se achava esperto, malandro, desapareceu. O plano dos enganadores era expandir aquele negócio lucrativo primeiro para países próximos e, então... Bem a ganância sempre quer dominação total com uma vista tranquila para fingir sossego.

quinta-feira, dezembro 08, 2016

Mortalha sobre mortalha



todos os sentidos estão afogados nas ruas
em casa a privação tem malícia e sarcasmo no marasmo pasmo com a cegueira das almas


celeiro das inundações cultivadas na própria palma suja de neutralidade
a cidade grita sua fumaça exigente na furtividade do concreto
todo torto reto é frio à indiferença das metades virando deste contexto jogado fora


olha a hora olha a hora não há tempo para achar o lugar do cansaço nas olheiras de aço intolerante aos atrasos


estou cego por ver tanto descaso descalço caminhando calmo sobre os acidentes diários da imprudência
a previdência fez sua prévia fúnebre adornada dos lamentos lascando o povo com os pagamentos da corrupção


quanta privação é necessária para nos despertar - esta gente proletária - e mandar essa cafajestada para Maracangalha?


sente sentido saindo sozinho pelas deficiências escalando a superação das aparências sem sequer sentir o absolutamente nada

apenas chega ao lado das limitações para seguir vestindo novas mortalhas.



(às 15h53, Rafael Belo, quinta-feira, 8 de dezembro de 2016).

quarta-feira, dezembro 07, 2016

Ninguém viu (miniconto)



por Rafael Belo

Ninguém caminhava pelas ruas àquela hora da manhã. Talvez pela quantidade de carros, talvez pelo clima deserto, provavelmente por ambos. Por isso, quando aquele casal surgiu anonimamente no próprio estilo de escuridão, poucos motoristas prestaram atenção. Todos temos nossas limitações, nossas escuridões, nossas deficiências, mas quem imagina eliminar quem possui deficiências na sociedade atual? Afinal, não somos tribos... Falando deste jeito... Preciso discordar de mim mesmo. Somos tribos e cada vez mais de uma pessoa só.

Algumas pessoas se rendem a escuridão em si e se satisfazem apagando as luzes do mundo. Àquele casal era cego... Andava perigosamente na rua ignorando a cegueira de quem enxerga. Mas, os dois pressentiam uma mudança brusca na já adaptável vida deles. Há quem acredite em intuição e há quem a tenha. Os sentidos de quem é privado de um são altamente apurados para compensar e o ser humano pode ser incrível e terrível. Naquela manhã, ambas as faces da humanidade se chocaram.

Foi um choque capaz de tremer por dentro quem estava próximo. Mas, na pressa poucos prestaram atenção realmente. A reação era robótica, totalmente mecânica e distante: mais um acidente? Espero que ninguém tenha se ferido. Segue em frente... Mas, sim. Houve feridos. Havia uma detestável pessoa responsável pela morte de tantas pessoas com alguma deficiência física. Elas eram consideradas desaparecidas porque esta escuridão ambulante “dava um jeito” nos corpos. Quando ela viu o casal no meio fio, por falta de calçada, andando confiante e tão amoroso com as bengalas – apesar de todos os pesares – ele simplesmente acelerou e viu a imagem dos dois aumentar, aumentar, aumentando, então, o impacto e o vazio.


Não foi o casal com os sentidos apurados atropelado. Aliás, ninguém foi. A mente de uma escuridão ambulante só pode ser distorcida e delirante. Realmente, ela partiu para cima acelerando no maior estardalhaço, mas Ame percebeu antes e sem pensar muito jogo seu Jeep, alguns metros antes do casal, na lateral daquele Sport com o objetivo tão repugnante. A motorista Hate foi arremessada na parede da fábrica e já se misturava ao frio da lataria frágil antes de toda a fábrica desmoronar. Ninguém viu onde foi parar o casal.

terça-feira, dezembro 06, 2016

arrebentar




falta de verdade a insanidade de enfrentar o fluxo
ver o luxo no lusco fusco de estar com as mãos no chão
vestir a coragem feita uma capa de herói para ir na contramão

não esperar o sinal abrir amarelar fechar continuar sonhando
andando encarando o horizonte nos olhos trazendo o amanhã nas mãos
ser são subitamente ao abrir os braços preenchendo todos os espaços com a própria presença

circulados de ventos para soar tempestades de gentes
ranger os dentes em um sorriso permanente tão quente
transformando cada limitação nossa em uma visão de superação

abra bem os ouvidos use todos os sentidos há necessidade de se importar
tomar goles do puro ar da Liberdade e todas as correntes arrebentar.

(às 10h43, Rafael Belo, terça-feira, 06 de dezembro de 2016)

segunda-feira, dezembro 05, 2016

Falta de verdade



por Rafael Belo

Foi um flash. Mais carros indo a toda velocidade em plena manhã de sábado e um casal de meia idade - ela morena, ele não – caminhavam na rua. É na rua! Um apoiava no outro em um meio abraço protetor. Não entendi a dinâmica possível ali, mas era óbvio ser uma prática constante o resultado daquela sincronia incrível. Ambos eram deficientes visuais e portavam bengalas brancas flexíveis tocando para todo lado o chão irregular. Os olhos deles estavam naquele movimento plástico e constante. Infelizmente a sensação, ao mesmo tempo de triunfo pela independência, era de indignação e medo por eles.

Segui com um olho à frente e outro no retrovisor. As calçadas sem piso tátil, irregulares, curtas em contraste com ruas largas esburacadas só demonstravam - e demonstram - o quanto a cidade cresce vergonhosamente para os veículos, para os prédios, para o fluxo de veículos e reduz os espaços para as pessoas. Não se fala de transportes capazes de agilizar e facilitar a vida dos cidadãos esmagados por motoristas mal educados, egoístas e com uma prática assustadora no trânsito. São só tarifas aumentando e limitando os direitos de todos. Aquele casal superava as deficiências do corpo e da cidade.

O fato simples de caminhar durante uma manhã, pensando bem, é cheio de limitações para nós que na pressa acabamos cegos e apenas desviamos dos obstáculos, olhamos para o outro lado e seguimos fazendo as mesmas coisas, reclamando dos antigos problemas, passando pelo caminho de ontem, hoje e amanhã empurrando a vida para o próximo dia mecanicamente conectados a rotina rezando para a sexta-feira chegar. Mais dos mesmos diariamente ignorando a própria limitação de reconhecer a olimpíada imposta pela cidade para superar fazendo alguma coisa.


Fico entre orgulhoso e pesaroso sem conseguir retirar da mente a imagem do casal com deficiência visual vivendo do apoio mútuo e sofrendo as consequências da cidade enfrentando em pé e de cabeça erguida, simultaneamente, o presente e o porvir na contramão do fluxo ignorante de veículos lotados de, praticamente, uma pessoa cada. Os vejo vir e depois continuar corajosos enxergando a vida com as mãos, os pés, o nariz e, principalmente, os ouvidos como nosso ser visual pouco ou nada entende. Fico lembrando que ainda vamos todos enxergar porque é preciso se privar para realmente compreender o que faz falta de verdade.

sexta-feira, dezembro 02, 2016

Outras formas (miniconto)




por Rafael Belo

Maritah corria pela vida. Ao redor a morte a cercava. Ela descia as escadas enquanto os muros desabavam e ofegante não podia parar. Já tinha até se esquecido dos motivos que a levaram até aquele terraço. Ela se sentia o próprio edifício, mas porque eram precisos 200 andares com praticamente 1000 metros... Mas, com o nome de The Kingdom Tower era de se esperar... Torre do Reino... Tudo isso acontecendo daqui a quatro anos sem nem imaginar estar na Arábia Saudita.

Aquele 1 km descendo não devia ser nada para Maritah. Ela era maratonista, mantinha a boa forma, corria de manhã e à noite. Eram quilômetros e quilômetros na esteira e sempre que possível repetia a travessia pela cidade, de uma ponta a outra, sem nem perceber. Maritah era como as outras pessoas... Procurava formas de ser forte e evitava expor as fragilidades e, uma hora ou outra, acabaria acontecendo uma implosão. Ela não acreditava em psicólogos e em falar, só em agir, em fazer, em se destacar... Mas tudo muda tão “de repente”.

Não queria estar sozinha. Ah, Maritah... Tão teimosa! Há tantas frustrações em conflito com as conquistas... Não falar do assunto é o mesmo que... Eu plantei tudo e, infelizmente, à noite o teto me mostrava o cultivo de sucesso. Ainda sem colher, aquelas frutas amadureciam e caiam sem estragar, mas me estragavam... Estragam. Quis chegar as nuvens com bagagem demais... Óbvio que cairia... Não! Não! Não! Não! Não! Eu assumo minhas fragilidades! Sou um ser humano frágil e a mesma fragilidade me faz forte.

Não deveria estar cansada. Vou ter que assumir que é psicológico, meu coração não deveria estar tropeçando, mas trotando como um cavalo livre em seu próprio campo aberto. Preciso chegar ao chão... De elevador levaria alguns segundos, mas não teria graça... Não me importaria de ser sem graça por um dia... Quem instala escadas em uma torre/residência deste tamanho? Que ideia heim! Que ideia! ... Mas estou me referindo a mim ou aos construtores, ao arquiteto ou ao Criador...? Ninguém me obrigou a estar aqui girando nestas espirais e estes detestáveis degraus iguais... Ah, o chão! Só vou deitar um pouquinho... Não tenho que me afastar pelo menos dois quilômetros?... Mas é uma implosão não um desabamento... Vou me afastar mesmo assim, há outras formas de chegar às nuvens.

quinta-feira, dezembro 01, 2016

Só se



não há muros entre nós estamos expostos e desatados
a fragilidade tão minha também é sua onde não há fortalezas

a pele da raposa foi vendida as uvas pisadas pela vida

vamos pelo tempo acelerando os minutos atrasando envolvimentos
desastrados momentos quebrando detalhadamente certezas

com as mãos de tantos quais digitais somos nós?

falhas se revelam futuros acertos nos tropeços passados hoje a nos equilibrar
somos imperfeitos feitos das nossas ações perfeitos sujeitos da criação a se criar
efeitos da reação das rachaduras rindo regularmente no rosto

só se saborearmos o experimentar saberemos o gosto.


(às 07h04, Rafael Belo, quinta feira, 1º de dezembro de 2016)

quarta-feira, novembro 30, 2016

Sem luz (miniconto)




por Rafael Belo

Cansada, Fabine se escondia naquela carcaça do tempo. Havia tantos muros ao seu redor que a luz não penetrava. Nem uma fresta sequer de iluminação chegava ali. Com os olhos dilatados, ela via vultos por toda parte porque só sombras habitavam naquele lugar tão particular dela. Foi quando Fabine quase perdeu o fôlego. Um estrondo ecoou tão forte que ela sentiu uma pancada no peito como se o próprio coração recebesse uma pancada inesperada após parar. Começou a respirar lentamente, mas agora sentia uma forte dor...

O que está acontecendo? Olho para todos os lados e não vejo nada. Eu esperava o quê? Não é este o objetivo do meu refúgio? Esconder estas fragilidades devastadoras em mim? Ah, Fabine é isso, Fabine é aquilo, Fabine tem tudo fácil, Fabine é uma fortaleza se espelhem nela, a imitem porque ela... Ah, ela não erra. Ela nem pisca ao tomar uma decisão... Sei! Estes bandos de lobos me devorariam em um instante se soubessem das minhas fragilidades e que eu pareço uma rapper falando de mim mesma na terceira pessoa.

Quem sou eu? Eu me tornei esta pessoa solitária, por quê? Onde eu estou? Aliás, onde é aqui? Minha alma foi vendida... Valeu o preço? Por acaso sou feliz? Para onde vou agora? Eu queria ser bem sucedida, mas não infeliz... Eu era tão feliz, não era? Tinha tantos sonhos... Eu realizei meus planos? Onde estão meus sonhos? Nunca parei para pensar sobre este lugar... Ai meu Deus! Este estrondo de novo...! Agora está mais perto. Qual o significa disso tudo? Agora dói mais ainda... Morrerei antes dos 40, igual meus heróis musicais... Não, só se for overdose de cafeína!!


Preciso sair daqui. Nossa! Não doeu nada pensar isso! Mas... Eu só posso ter desmaiado. Nunca vi luz por aqui. Onde estão meus muros? Sinto-me tão exposta... Será...? Foi tudo coisa da minha mente? Meu peito dói, minha cabeça dói... Alguém apague a luz, por favor. Estou sozinha, esqueci... Sou sozinha. Preciso interagir, mas vão pensar que enlouqueci. Sempre fria e distante. É mais fácil não se envolver com os funcionários da minha empresa... Vou procurar minha família, mas vai ser tão difícil pedir desculpas... Se eu me afastar... Bom, preciso tentar. Foi assustador ver a fragilidade da minha fortaleza sem luz.

terça-feira, novembro 29, 2016

Debaixo da quedá’gua



sorrisos rachados espalham rachaduras pela face
disfarce nossa frágil arte atrás dos muros da fortaleza
a solidão da certeza desta frieza na ilha vira salgada chuva

fragilidade de dois gumes do chão ao cume usa luvas

para não deixar má impressão todo mundo urra
após curva surpresa da vida insistir em resistir até o fim
e o ser humano volta a vestir a raposa e as uvas

no grande campo aberto não há cheiro discreto no jasmim
ai de mim se não chorar chuvas para a dor deixar de ser turva!

(às 12h53, Rafael Belo, terça-feira, 29 de novembro de 2016)

segunda-feira, novembro 28, 2016

Frágeis fortalezas



Por Rafael Belo

Amanhecemos levantando muros, tentando criar uma fortaleza por dia para mostrarmos estar bem o tempo todo. Queremos sorrir e mostrar que não importa, que nosso coração pode ser esquartejado e dado de comer aos cães diante de nossas risadas... Queremos ser resistente, resilientes, indiferentes fingindo que nada aconteceu, mas olha só a surpresa: aconteceu. Temos de nos encarar no espelho no fundo de nossos olhos e arrancar nosso mal costurado coração para encará-lo. Precisamos de coragem para enfrentar nosso eu obscuro, nosso erro surrado, espancado pelos nãos, pelas armadilhas e pelas curvas da vida.

Erguemos a cabeça ou a afundamos no chão, tomamos satisfação, tomamos na cara, tomamos vergonha, somos corajosos e destemidos repletos de pontos fortes, mas falar das nossas fraquezas também é necessário porque ninguém sabe mais de nós... Apenas nós mesmos nos conhecemos totalmente e ainda assim nos negamos três vezes antes do galo cantar, ou melhor, antes do celular despertar. Paramos o despertador ou vamos adiando levantar a cada cinco minutos, a cada dez minutos, até ser inevitável sair da cama e termos de levantar para nos juntas aos outros zumbis.

Nada acontece de um dia para o outro, mas temos o péssimo hábito de fingir não ver, de tentar evitar, de achar que vamos mudar com palavras o que ações não fizeram e ainda de última hora, por isso, saímos nos arrastando com o olhar vazio para um ponto qualquer reclamando de sermos donos, de sermos chefes, do chefe, dos colegas de trabalho, dos amigos, da família, dos pais, dos professores, da escola, dos filhos, dos vizinhos, bem... Reclamando da vida e das “injustiças” para continuar agindo da mesma maneira evitando cantar “o que é que eu sou?”, interpretada por Paula Toller e composta por Erasmo Carlos. A música questiona: “o que é que eu sou? Eu vim por quê? Pra onde vou? Onde é que eu tava? Onde é aqui? Quem me mandou? Qual é o nome da minha alma?”


Esta balada intimista termina afirmando que você não sabe, eu também não sei, somos o todo, feitos de nada... Porém, podemos assumir nossas fragilidades e derrubar esta falsa fortaleza comandada por um ditador morto. Assim descobriremos o todo no nada e o nada no todo. Se não o fizermos viveremos presos e acumulando veneno, nos matando lentamente, simplesmente porque estamos engolindo ressentimentos, raivas, momentos e frustrações deixando de resistir e insistir para apenas ir se deixando levar. Oras! Resistir é da nossa natureza, mas precisamos preparar a mente não para ser forte, mas para encarar as fraquezas, se fortalecer nelas e, finalmente, nos sentirmos confiantes e confortáveis com quem somos. Quem é você?

sexta-feira, novembro 25, 2016

Lá no fundo (miniconto)





por Rafael Belo

Ela estava cansada daquela corrida, mas não era por correr. Estava tão condicionada a ponto de poder continuar por dias na correria. Não. O problema era o calor insuportável. O cansaço não vinha e Melodia escorria. Sentia-se uma cachoeira após um ano de diário temporal. Lembrava as noites em claro encharcando as roupas e a cama sem nenhum motivo bom... Só o calor. Nem a temperatura do banho importava mais, antes de se vestir... Quando se vestia já precisava de um banho novo e este tempo perdido ela começaria a jogar fora onde quer que estivesse.

Chegava já. Melodia corria balançando resignada e negativamente a cabeça. O fazia com tanta força que mal percebeu quando jogou o celular longe, apenas para não ver as horas. Nem se deu conta quando o relógio cardíaco também marcador de tempo acabou pisoteado. Ela nunca tinha visto tantas pessoas disfarçadas de incontáveis profissões correndo na mesma direção que ela. Bastou perceber para parar de repente. Houve xingamentos, esbarrões e trombadas doloridas mesmo, além de uma estranha encarada silenciosa e inexpressiva que simplesmente se demorou ali até simplesmente desviar como se nunca tivesse acontecido.

Aquela festa a fantasia itinerante despertou Melodia. Ela franziu a testa e movimentou cada músculo facial quando se viu ali, ao contrário do fluxo. Lentamente tirou o olhar das pessoas e lentamente o levantou para o horizonte. Procurou um espaço que não havia e se derreteu diante da visão. Não tinha certeza se o dia acabava ou começava. Percebeu que fazia muito tempo desde sua perda da falta de noção de tempo. Sorriu quando pensou sobre os reflexos daquela pintura celeste aparecerem incompletos...


Começou correndo calmamente, trotando, mas logo estava – inexplicavelmente – usando toda força física e mental para manter as pernas em uma velocidade incrível, mas fantástico mesmo era as pessoas saírem da frente. Se neste momento houvesse uma visão aérea ainda não haveria espaços vazios, mas um corredor humano tinha parado e parava de criar várias versões viciadas do passado e este novo fluxo ainda se livrava do tempo quando Melodia chegou cantando em casa para se libertar de todo controle de hora em hora girando no que não fez/no que faria. Finalmente assumiu ser original lá no fundo e iria cavar este presente.


quinta-feira, novembro 24, 2016

passa por pressa



passa o coelho branco veloz um borrão santo arremessando o tempo
estamos atrasados correndo em quedas por buracos do avesso nos desfazendo
diante do adiante com os ponteiros loucamente girando a cada 11 números se atropelando em segundos supostamente idênticos
vamos nos manipulando na corrida maluca do pós-moderno não existindo no ciclo confusamente dântico
pânico do agora outrora outra vez se repetindo enquanto vamos indo na mesma direção

rompendo a situação na inversão de todos os sentidos nossos passos são o caminho

para onde vão nossos pés é o lugar do nosso instante hesitante em não se repetir
coelho branco sentado no banco deixando sozinha pressa partir
e o segundo neste eterno milésimo arde à tarde enquanto o sol pára para nos ver se pôr
então a noite falha em nos fazer dormir queremos nosso tempo de volta para acontecer aqui.


(às 15h, Rafael Belo, quinta, 24 de novembro de 2016)

quarta-feira, novembro 23, 2016

Desmemória (miniconto)




por Rafael Belo

Os tics-tacs pararam sem aviso. Aquele silêncio súbito perturbou o cotidiano plasticamente repetitivo. Isto quase parou o coração de Alira. Talvez tivesse parado e ela nem percebeu. Parecia um pesadelo que não conseguimos acordar e de repente acordarmos sentindo o quarto diminuir, a escuridão nos apertar e esfriar o quarto quente suado. Os sons se recusavam a ser repetições e, por qualquer razão, não seguiam... Ela conferiu a televisão, o microondas, o notebook, o celular, o relógio de pulso, a decoração de parede, mas teve medo de procurar a posição da lua.

Alira sentia que tudo recuava, se repetia como lembranças perdidas no Facebook há um ano, há cincos anos, há décadas, há tempos imemoriais...  Era um incômodo parecido com ser observado em filmes de suspense e terror, era um equivalente a um déjà vu sem fim aliado ao enigma da esfinge sem jamais ser solucionado, então a alma revivia o castigo de Prometeu. A ironia de uma grande águia devorar o fígado do titã amarrado a uma rocha pela eternidade que simplesmente crescia novamente no dia seguinte.

Ela via sombras dos passos. Eles eram os mesmos, mas... O visual vinha mais elaborado parecendo simples, mas tinha uma complexidade típica da manipulação, da ilusão do poder... Alira olhou para a lua. Era a super lua latejando no meio da noite. Ela sentia aquele pulsar devendo descontrair, porém, apenas contraia como uma dor que não passa, uma fibromialgia sem tratamento sequer para amenizar. Aquelas estrelas ofuscadas já inexistente, já mortas, ainda brilhavam em outros séculos da mesma forma.


Desesperada, Alira tentou insanamente voltar as horas em tudo que as informava. Como nada informava o tempo exato mais, não percebeu quanto tempo passava, mas todo o olhar dirigido a lua só reforçava a loucura dos erros não aprendidos serem repetitivamente repetidos e a corrupção histórica corromper a memória enquanto quem despertava desmaiava de exaustão. Alira acordou no silêncio percebeu a falta de batidas do próprio coração, não estava entendendo... Por que o tempo não passava? Ainda deitada, respirou fundo e preferiu voltar a dormir.

terça-feira, novembro 22, 2016

Atrasados



várias versões viciadas do passado transformam indignados em atropelados
escravos dos protestos digitais fotografados no meio da rua
sociais literalmente conectados a uma diferente lua

fases feitas de frases leigas escondidas no tempo ficam mudas

entrelinhas do movimento se perdendo no entretenimento dos bichos da revolução
dissolução de ditos reescritos em imagem e voz para a vontade de poucos parecer de todos nós
distorcer a realidade invertendo os pólos revelando o herói algoz

e a disfuncional família hoje ausente no mesmo ambiente ontem sai da trilha perdida
aturdida na sua posição confundindo direções frente é atrás

traz acua flutua insinua constrangimentos andando de costas
pensando seguir para outra hora encosta em um ilógico tempo na estante
quando atua mostra que se aposta no pódio do amanhã tem o passado por falta de agora o relógio adiante.


(às 23h42, Rafael Belo, 21 de novembro de 2016, segunda)

segunda-feira, novembro 21, 2016

Várias versões viciadas do passado



por Rafael Belo

Não sei por que achamos estar em algo chamado pós-modernidade se nem terminamos a modernidade ainda. Pensando bem, vivemos várias versões viciadas do passado contrariando nossa noção de presente. Estamos presos às nossas próprias sombras, a ideias que não funcionam mais, as maneiras tão usadas a estarem gastas, caquéticas repletas de todos os tipos de aranhas tecendo novas teias, ideais cristalizados entre o tempo dividido em horas afastando a humanidade dos valores inerentes a nós, chamados humanos, e deixando a razão alucinada ao meio de tanto disfarce e manipulação entrelinhas de uma nova roupagem de autoridade.

Há novas maneiras da velha forma de nos enganar, nos fazendo ainda mastigar o ontem, estamos indigestos de agora há pouco, ruminamos atitudes ultrapassadas e seguimos filmando o próprio filme da nossa vida em um Além da imaginação, o famoso Twilight zone criado em uma realidade paralela na qual deveríamos viver, mas morremos. Morremos cada momento revivido em tensões históricas, morremos a cada palavra rasgando quem somos, morremos a cada atitude vazia tomada como sicuta deixando um olhar vazio pendurado no horizonte e um sentimento de falta, de ausência.

Esta Era de aparências se expandiu para os três poderes e passou do limite ao chegar nas mídias digitais. É preciso trabalhar bem a imagem, encaixar bem as palavras, desenvolver textos e discursos incisivos e emotivos exatamente como grandes romances premiados encurtando o tempo para ler, apagando a reflexão de pensamentos profundos para rápidas passadas de olhos... Lemos as primeiras linhas, os títulos, os resumos e já somos mais um especialista em nada deixando a vida nos levar, os muros nos dividir e este incômodo nos separar com um ranço da areia movediça reeditada da Guerra Fria.


Somos um povo, uma comunidade, não fragmentos de tribos lutando pela mesma causa com nomes diferentes. Temos de defender uns aos outros, nossos direitos e deveres, não um poder transitório que a cada um de nós deve responder, ao qual elegemos e temos sim responsabilidade por ele. Somos os patrões deste lugar no qual estamos, somos vestígios dos humanos que poderíamos ser, que deveríamos ser... Não adianta ficarmos indignados, escrever horrores, refletir e não agir. Ficar sentado reclamando, revoltado com tudo, vestir a rebeldia sem calça e viver de causas errando os mesmos erros, passando a vida no passado é reforçar esta prisão que dizemos ser presente e liberdade.