sexta-feira, novembro 11, 2016

Olhar noturno (miniconto)




por Rafael Belo

O sobrenatural estava presente na noite. Era certo pela lua oval vermelha já tocando o horizonte e o vermelho sol saindo entre as árvores do outro lado. Havia uma neblina pairando. Fellinie Notche estava caída em uma poça de sangue aumentando vagarosamente. O pé esquerdo e todo o tornozelo estavam dilacerados. Eram visíveis ossos, tendões e articulações, mas ela permanecia encolhida e tensa sem demonstrar a terrível dor visível latejando naquela imagem. Murphy estava acordado aplicando sua lei pessoalmente para cada um.

Arcadia apareceu neste momento e quase atropelou Fellinie quando a viu. Cães perturbados mordiam o meio-fio, pneus, árvores e com certeza a matariam se Arcadia não tivesse jogado o carro pra cima dos animais já próximo de Fellinie. Mais adiante ainda era possível ver o carro desvairado responsável pelo acidente com fuga. Eram altas horas da madrugada como a lua indicava e quase o amanhecer como o sol desafiava. Nem os semáforos estavam abertos. Piscavam inconsequentes como os bêbados solitários parecidos com figurantes de Walking Dead.

Havia um gato em cada esquina parando para olhar o carro de Arcadia e do anônimo namorado dela. Eles olhavam nos olhos humanos com um misto de desconfiança e desafio. Nada funcionava, nem as clínicas 24 horas... Estava tudo indefinido e Fellinie ainda não havia dito nada, apenas olhava como... Como... Como uma gata abandonada... O casal tentando salvá-la estava entrando em desespero. Em um dia sem nada funcionar a sensação era de estar em um filme. Aquela aventura sem fim era como definir extremas direita e esquerda.... Não eram definidos porque não tinham definição. Estavam sentados na própria origem. Uma das coisas incríveis para se pensar eram as horas rodadas de carro sem o medidor de combustível se mover. Ele ainda indicava tanque cheio...


Fellinie testava corações de novembro. Era parente da deusa Bastet e poderia se curar quando se transformasse, mas fazia tanto tempo... Ela não recebia atenção e cuidados de ninguém, por isso, os olhos de gato dela refletiam expressando dor e receio. Ela tinha perdido todas as direções. Não esperava um atropelamento. O acidente a havia desnorteado. Tinha fobia de sentar em qualquer indicação de direita e esquerda. Sua direção era, óbvio, o equilíbrio. A qualquer momento ela acabaria com aquele inferno a anestesiando. Quando o carro parou diante de uma clínica, Fellinie mostrou também ser a própria noite e se transformou em um negro gato. Depois se curou e pelo gesto do casal os presenteou com o enxergar diante de qualquer escuridão.

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