sexta-feira, maio 26, 2017

posse (miniconto)




por Rafael Belo

Seus sapatos Scarpim rosas estavam gastos e prestes a quebrar. Ela já havia descido do salto, mas era tarde demais. Andando em círculos no gabinete dela pela incontável vez, era possível identificar o desnível no chão daquela repetição de insegurança e nervosismo da senadora. Veranah tinha começado com um propósito desde as bases na vereança. Mas, já naquele começo se retorcia, contorcia e era isolada, porém na era da informação todo mundo tem acesso à tecnologia. Sua assessora de imprensa mantinha um celular conectado no face Ao Vivo o tempo todo. Tinha bateria de lítio capaz de gravar até 72 horas sem parar.

Veranah resistiu e trouxe o povo com ela mostrando passo a passo seu reality político. Com o tempo seu público explodiu e o mundo já a via. Havia, porém, a escala do poder nos degraus da vida dela. Pressionada pelos seus eleitores, Veranah mostrava não responder ao partido, mas não queria correr o risco de lutar contra a corrupção diretamente. Ela se mostrava transparente e leal sempre. Seus colegas a temiam e a evitavam. Ninguém queria ser exposto. Inúmeras tentativas de “sumirem” com a senadora já tinham sido inutilizadas. Nenhuma dava certo.  Sempre vazavam informações e a segurança solidária elaborada por amigos de Veranah era muito boa.

Na escalada ela já havia mudado quando prefeita. Um ranço e um ódio do cargo a revolviam por dentro. Ela se sentia chafurdando em si mesma e nas escolhas feitas. Foi deputada estadual, mas foi obrigada a se afastar para assumir uma secretária do Estado. Não aguentava mais viver cercada sobre segurança e o seu Verão não durar tanto. A cara de pau havia evoluído e nem as câmeras adiantavam mais. Mesmo assim ela era evitada e isolada. Como governadora ela pensava na medida impopular de impedir o povo de pedir. Sempre pediam emprego sem capacitação, salário sem presença, pagamento de conta de luz, água, aluguel, prestação da casa própria, o boleto do carro... Ela estava desiludida. Falar de seus colegas de “profissão” então... Era abandono total.

Mesmo assim foi em frente e depois de uma passagem pela Câmara dos Deputados, estava quase encerrando o mandato de senadora. A queriam presidente e ela se viu engessada. Não poderia fazer nada. Quem iria aprovar seus projetos de reforma? Seu limpa geral do sistema, a aposentadoria compulsória de quem estava no serviço público há tempo demais e implantação de um rodízio para os demais. Só para não sentirem o gosto do poder e se engasgarem. Sem dormir há dias, sem comer nada há quase duas semanas e sem beber água há 36 horas, sua mente alucinava. Há um mês sua assessora tinha desaparecido e há poucas horas fora encontrada sem língua e sem olhos. Nunca tinha fumado na vida e tendo perdido a única família que lhe restara, Veranah procurava um presente cheio de fluído e refil para isqueiro.

O incêndio começou na madrugada de sexta-feira e Brasília queimou como se não houvesse amanhã. A Capital política brasileira foi reconstruída alguns anos depois apenas como Capital Histórica. Agora os políticos de mandato único por lei, habitavam o novo Distrito Federal: Cariotano. Uma cidade na fronteira entre Rio de Janeiro e São Paulo, próxima à Bananal. Veranah acordou sorrindo apesar dos murros na porta do gabinete. Sonhar podia custar seu mandato e ela não iria arriscar bem no seu discurso de posse.

Nenhum comentário: