quarta-feira, outubro 10, 2018

desconhecida emoção (miniconto)






por Rafael Belo

Eu choro. Choro toda vez que a palavra livre foge da minha boca. Ela escapa pelas cicatrizes da crueldade e do ódio mapeando o meu corpo. Das agressões que sofri e se você seguir as marcas pode chegar até minha mente travada. Ela segue torturada pelas torturas ensandecidas praticadas por mim e tudo veio de volta. Mataram-me diversas vezes mas não o suficiente para pagar quaisquer pecados meus. Uma hora eu era Deus outra eu questionava a existência dele.

A cada ano passado eu volto para uma época de atrocidades. Sou uma anomalia nesta sociedade. Sociedade de Paz. Eu, mulher não vejo gêneros… Não tenho nome há tanto tempo, mas tenho poder ilimitado. Este instante novo de vida é menos que um sopro, mas maior que um suspiro. Fui estuprada, dilacerada e violentada de tantas formas que minha melanina acentuada e meu nascimento social sempre me trazem como estatística. As pessoas fazem questão de esquecer…

Eu faço questão de lembrar. Não nego nada além da negação. Eu morri nas últimas Cruzadas, passei por todos os campos de concentração do Holocausto, mais recentemente eu estive no topo das Torres Gêmeas, lá atrás na devastação da Peste Negra, nos escombros de Portugal no Terremoto de Lisboa, na proa do Titanic, na Primeira Guerra Mundial, nos voos do Desastre Aéreo de Tenerife, estive em Chernobyl, em Hiroshima e Nagasaki, no Boeing da Gol , no voo 3054 da TAM, no voo 447 do Airbus A330 da AirFrance, no Terremoto de Porto Príncipe, nas Chuvas do Rio de Janeiro, no estouro da represa em Mariana, na Boate Kiss, no edifício Joelma, no Carandiru, nas Chacinas da Candelária, do Vigário Geral… Não lembro mais.

Eu posso ter matado, mas é certo que  morri também. Talvez eu seja a Memória ou a própria História, mas quem me tem hoje em dia? Estou defasada. Até quando sou citada viro negação ou fakenews… Por isso, estou uma imagem chorando em algum canto de luz rodeado em densidade por sombras. Tantas mortes pelo descontrole são imagens vivas na minha mente e eu choro copiosamente... Então, quando a palavra livre se desvencilha de mim e sai, há uma dor inexplicável ou talvez seja uma emoção que eu não reconheça. Será que sou a Morte?

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