por Rafael Belo
É sempre frio por aqui. Meu teto é o céu nublado. Meu chão este assoreamento, obras inacabadas, ignorância e invisibilidade. Eu sempre quis ter este superpoder, mas foi tanto dor causada que hoje só vivo anestesiada. Bom, sobrevivo. Já fui gente, sabe… Sai do fundo do poço, conquistei o topo do mundo. Lutei, estudei e cai… Sempre tem algo acontecendo… Ninguém percebeu. Desci tanto e já não tinha como sair. Nem havia água no poço… Transformei-me naquilo que mais temia.
Desdenhava de pessoas como eu. Pessoas? Sombras. Um incômodo para quem não está nesta situação e torce para não ter que parar o carro nos sinais… Eu sobrevivo da boa vontade de estranhos e vago. Desconheço a esperança, desconheço a atenção, desconheço carinho… Eu sou um anjo caído pagando pelos meus erros e acredito todos também serem. Eu saberia em outra época, mas agora não sei nada. Quando eu não era vazia ainda via a Perdição em todos. Eles reconhecem os outros perdidos e este é o maior medo deles.
Fomos celestiais e hoje apagamos nossas chamas divinas. Somos alimentos dos zumbis dos Poderes eles devoram nossos cérebros diariamente. Até acordamos em um coma lúcido feito de um cotidiano massivo e repetitivo, mas já não pensamos. Vamos no impulso sanar nossos impulsos. Somos todos mendigos pedindo ao invés de moedas, dignidade. Pedimos igualdade nas ruas, mas somos desiguais. Só enxergamos àqueles que julgamos parecidos com a gente… Agora você sente este frio constante?
Eu tremo. Estou sim em abstinência. Abstinência de humanidade, de dignidade e eu gostaria de falar tudo isso pra você antes de você fechar esta janela. Não adianta, o sinal aqui é cinco tempos… Deixe-me aproveitar este raro tempo de.lucidez! Eu já fui você. Você já foi minha família. Eu só tive você. O que você fez? Todos acham que morri? É esse o pensamento de todos que um dia estiveram presentes nas vidas de todos os moradores de rua? Eu preciso saber se há esperança, se não foi abandono e por que quem pode fazer algo não faz nada?
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