por Rafael Belo
Era quase o silêncio total. Se não fosse o som insistente do chuveiro... Mas para ele era. Este também era o melhor momento do dia. Ouvir a água cair e escorrer da cabeça aos pés era uma alegria. Era a hora de pensar só, de deixar fluir todas as horas que se passaram. Era uma limpeza total. Primeiro da mente. Depois da pele e todo o corpo. A água escorria sonora e borbulhava pelo ralo. Uma música com a melodia das gotas. O melhor som para seus ouvidos e a alma cantava. Lá fora já não chovia há anos.
Pensando no que ainda não aconteceu, percebeu que não haveria mais banho como o seu. Riu da rima e de repente não havia mais água e, apesar da melodia do chuveiro ser ainda insistente, ele nem estava mais no banheiro. Mesmo calmo, se agitou e sentia que onde quer que procurasse não encontraria ninguém nem banheiros. Como se em toda poça rasa houve um profundo abismo e todo aquele quase silêncio não era dele, era de tudo ao seu redor. Só ouvia a água caindo e borbulhando no ralo.
De olho fechados caminhava de ouvido. Estava descalço. Caminhava de tato. Além de lá onde se encontrava havia um instrumento perdido em um espelho infinito cheio de pingos de ideias espalhadas pela sua superfície, mas pela sua profundidade estava todo o céu cheio de nuvens a explorar. Haviam tantos planos assinalados, mas carregados de bagagens abarrotadas prontos para serem limpos e abrirem espaços novos. Havia muitos dias brilhando atrás das nuvens e todos esses pareciam ouvir a melodia do chuveiro.
Neste imenso quase silêncio esticou a mão direita e percebeu que ela saia de um cortina de água. Ainda estava de olhos fechados quando tocou uma válvula fria. Deitou a cabeça. Sorriu de boca fechada. Girou a válvula para a direita. A melodia do chuveiro terminou. Estava limpo. Pronto para ser preenchido, pronto para seguir ouvindo mais baixinho aquele seu melhor som acompanhando a canção da alma. Havia calma e êxtase naquele olhar quando saiu do banheiro para toda a poluição sonora lá fora.
2 comentários:
Adorei o conto, a que chama «mini». mas de grande inspiração.
bjs
Obrigado Ana Tapadas. Com o hábito de criar e escrever aprendi a síntese da inspiração que aparenta resumida, mas não o é. Seja muito bem-vinda.
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