Sonho do sonho
por Rafael Belo
Foi difícil acordar. No sonho dentro do sonho sabia que
sonhava, mas não quão profundo. Lembro de deitar para dormir para acordar.
Tinha que acordar e acordei dentro do sonho. Nele comecei a me beliscar e nada
de acordar pela segunda vez. Parecia que minha cabeça pesava, doía e algo
impedia meu despertar. Sentia algo ruim. Só quando espalmei a mão entre as
sobrancelhas e os olhos consegui acordar. Estava pesado e fiquei atento. No
mundo real começava a chover. Tirei os cachorros do descoberto, troquei a água
e voltei a dormir. Mesmo assim, até agora estou com uma sensação desagradável.
Não me lembro da última vez que isso aconteceu – se é que essa não foi à
primeira. Você já passou por isso? O sonho lúcido. Neste instante me encaixo
nos sonhadores lúcidos e você?
Naquele momento me senti um “onironauta” ou explorador de
sonho. Mas, não havia nada visível nele, ou melhor, neles, apenas a sensação.
Tudo era branco ou cinza. Parecia que eu flagrara minha mente começando a
criar. E, claro, não queria explorar... Havia deitado apenas meia hora atrás.
Estar consciente de sonhar enquanto sonha parece uma quebra de regras ou algo
em mim se quebrou depois que acordei na madrugada de domingo para segunda. Foi
– e ainda é - como se a noção do real e o imaginário se rompesse. A cortina que
separava dois mundos foi erguida. Mas, antes de conseguir levantar senti a
paralisia do sono. Não controlava meu corpo adormecido como se houvesse um
delay entre meu comando. Ainda agora pareço metade e aos poucos a cortina vai
se fechado. O onírico e a vigília se fundiram por um momento e o fragmento
desta rápida fusão e separação ainda sonha em mim.
Esta paralisia passageira me lembra da corrupção da
liberdade. Não porque na segunda-feira foi 13 de maio e há 125 anos a Princesa
Isabel decretou a abolição da escravatura já maculando há três séculos, mas
pela forma como é manipulada nossa liberdade ainda mais daqueles sem acesso a
informações diversificadas ou ainda aqueles que o são, porém não possuem o
discernimento. Estamos paralisados no trânsito porque não temos um transporte
público de qualidade, no emprego por desconfiança – ou excesso de confiança –
na nossa capacidade, nos estudos ou no sonho consciente e passageiro de
estabilidade. Fato é que não queremos estabilidade parece que tal palavra nos
leva a distorção de sermos livres e não ter a opção de se mexer é sim um
pesadelo.
Sonhamos acordados mesmo aqueles sonhos mesquinhos, invejosos
e vingativos de querer nos quais a ambição escorre pelos cantos da boca feito a
enxurrada de uma chuva que não molha. Acordar dentro deste sonho lúcido deixa
um gosto na língua meio-amargo, meio sem sabor... Destes que damos a mordida
esperando o melhor, sorridentes, e o sorriso desaparece como se nunca estivesse
lá. E assim pela metade espero o sono vir e tirar este vazio que o despertar
duplo da madrugada deixou no meu estômago, esta azia onírica de vigília pronta
para devorar a metade ainda dormindo na passagem de domingo para segunda.
Um comentário:
Paralisados pelos desmandos...pela incoerência....pelas incertezas..Meu Deus...tomara que eu acorde desse pesadelo! Muito bom o texto..Parabéns!mammy
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