sexta-feira, setembro 14, 2018

Estamos em guerra (miniconto)







por Rafael Belo

As pessoas cultuam a saudade e a dor por aqui. A sociedade da dor e da saudade. É o que move a economia neste mundo destruído. Nesta terra desatenta, os joelhos se dobram sustentando o mundo, as culpas, os mares se formam de saudades transbordando em deturpações latentes, queimando, dilacerando estes alimentos adulterados com vidro moído nos triturando por dentro, nos matando para desvalorizar as pessoas e valorizar objetos, status, a velha aparência padrão desdenhando de pele, corpo, classe...

Eu era estas pessoas. Tentei derrubar este sistema e posso dizer que estou morta. Para a sociedade, para o sistema... Venderam minha atitude, minha voz, tentaram me deletar da existência, mas havia muitos backups de mim por aí e os downloads foram realizados com sucesso. Eu viralizei e a cada tentativa de sumirem com algo, apareciam milhares de avatares meus contaminando cada clique com views desta sociedade lucrando da nossa dor e transformando a saudade quase em uma maldade...

Quando derrubaram todo o sistema para hackearem toda a tecnologia rastreada deste mundo do avesso, eu realmente tive de desaparecer. Dada como morta, não poderia morrer novamente, não poderia aparecer que qualquer câmera ou smartphone me denunciaria e em instantes meu mito seria arrancado de toda a existência. Eu tive que aprender a sentir dor e saudade novamente. Minha insensibilidade crônica causada pela Síndrome de Riley-Day me fez viver uma jornada em busca dos meus neurônios sensoriais...

Haviam células troncos experimentais capazes de serem redirecionadas para a criação destes neurônicos. Funcionou e adivinhem, virei experimento. Todos viram a primeira vez que chorei, que senti dor, mas eu aprendi biológica e neurologicamente a não permitir ser dominada pela tristeza na hora da saudade e pela negativada na hora da dor. Então, eu ria ao chorar também, eu sorria ao lembrar do passado, das pessoas... Eu era uma anomalia de risco. Eles me consideraram um risco ao equilíbrio nacional e hoje eu sou uma foragida. Não estou sozinha e nem original pareço diante de tantas distopias, mas eu sou real e desperto ao menos a reflexão e só de causar este risco causei o colapso desta economia. Estamos em guerra quer você saiba ou não.

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