por Rafael Belo
A porta se abriu com um ranger acumulado que parecia ecoar por anos. Como se fosse a primeira vez a ser aberta. Ela estava concentrada do outro lado. Havia uma cegueira impedindo a visão e tal sensação era provocada por uma chuva sem fim que dividia os aposentos. Ela pensava longe se deixando levar pelo som apocalíptico daquela queda d'água. Mas de alguma forma foi forçada a olhar para a garagem antes mesmo do ranger. Não havia ninguém lá quando com um forte estrondo a porta foi escancarada.
Contornou o ambiente decidida a não se deixar pregar peças pela solidão. Não controlava, porém, uma tremedeira assustadora, quase convulsiva. Apertou o interruptor da garagem e toda a energia oscilou na mesma fração de segundo do estouro das lâmpadas sentiu um aperto como se fosse sufocada por mão de ferro. O portão eletrônico se elevou. Impulsionada entrou no carro, tateou a chave reserva escondida no estofado do passageiro. Quando acordou estava nas ruas acelerando e acelerada.
Seus próprios pecados a embarcaram em uma aventuras nas águas. Uma fuga. Mais uma. Distraída, imprudente e egoísta deixou atrás de si um rastro de buzinas, xingamentos, rostos contorcidos e braços erguidos. Até onde iria? Sozinha não tinha rota ou parente. Sua mente ia na contramão. Só via a si mesma arremessando pedras pelo caminho e seguindo vazia como se desenhasse no ar às pressas e escrevesse na areia a própria definição.
A chuva passou e ela já havia distribuído raivas e ameaças por todo o trânsito. Ignorava o rastro que deixara. Viu toda aquela semana ser afogada e se afogou também. Ao menos pela primeira vez admitia. "Aceitava", finalmente, estar assustada e distante de quem ela era e do que se tornou. Era um objeto. Uma engrenagem defeituosa fazendo funcionar tudo o que detestava. Por um instante quis estar literalmente afogada. O momento passou tão rápido quanto veio. Precisava continuar a fazer escolhas. Só queria parar de repetir os próprios e os erros de todo mundo. De súbito, quase se arrependeu de tomar consciência. Afinal, conhecimento era reflexo de responsabilidade e já tinha passado da hora de crescer.
Um comentário:
"uma engrenagem defeituosa fazendo funcionar tudo que detestava", para mim essa engrenagem está evidente em todas as maquiagens em diversos setores, mostrando o que não existe, e só aparece para mostrar ao público que crédulo ainda
quer pensar que aquilo é verdadeiro..Triste.. Precisamos continuar a mostrar que ainda teremos um país melhor..Mamys
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