segunda-feira, setembro 23, 2019

Se não conhecer ninguém







por Rafael Belo

A sensação de sobrevivência é estranha. É boa. É um frescor e um peso no estômago ainda mais quando não se trata de você e ainda assim se trata. Quando as desigualdades, o desânimo, a revolta, a raiva, o medo, os maus-tratos surgem antes do cuidado, da gentileza, do bem-estar, dos direitos e deveres, sentimos o valor da vida humana. Um acidente sofrido por quem mora no seu coração te leva a realidade da ausência de leitos e do abandono das pessoas.

São detalhes que definem toda a linha inicial desfiando o tecido bem costurado de alguns segundos atrás. Um tempo desperdiçado cuidando de bens materiais enquanto a vida importante está em um local frio de dor e sofrimento. Os prontos socorros, clínicas, hospitais e unidades de saúde públicos seguem da mesma forma desumana. É desespero o que lá habita, é desesperança depositada em macas… Há pouco mais de uma semana se não fosse a fé, família e amigos talvez agora a conversa fosse sobre mais números e estatísticas.

O impossível realmente não existe. Analisando o acidente o que fica é o milagre, a mão de Deus… Na parte humana ficamos na burocracia, principalmente se não se conhece ninguém. Quando não há ninguém para intervir, agilizar, fazer os direitos valerem ou o conhecimento dos próprios direitos para advogar por si… É o abandono, o para depois, o esperar, o velório… Há justificativas para todos, para tudo, mas e as ações? A efetividade? A iniciativa? A proatividade e o profissionalismo?

Apesar de mal pago e sem reconhecimento, ser jornalista tem para os outros um peso e um glamour raro para o profissional. Depois de reclamar com todos e poucas horas abandonada no PS da Santa Casa com muita dor devido a fratura exposta causada pela imprudência de uma motorista sem habilitação na BR 163, que atingiu a moto pilotada pelo meu amor, foi preciso algumas ligações para alguém da saúde amenizar a dor e encaminhar para o raio-x. O acidente aconteceu 17h40 e já eram quase 20h daquela quinta-feira.

Mais tarde, quase meia-noite, ainda consegui entrar para vê-la e a quantidade de acidentados se acumulava por toda parte. A toda hora uma nova ambulância trazia uma nova história de dor. Resumindo idas e vindas com suspeitas e exames, quando a vi novamente, ela estava entre duas salas em um ambiente de 80cm por 1,80 cm com uma pia. No dia seguinte ainda estava no mesmo local. Mais revoltas e ligações… Contatos… Depois do almoço da sexta-feira 13, foi levada mais adiante para o Hospital do Trauma. Entre promessas de cirurgia, dor e contatos do SAC da Santa Casa, a cirurgia só aconteceu no sábado depois das 05h30 da manhã. 

Eram 14h de um nervoso sábado quando meu amor saiu do pós-operatório. O milagre ficou com três placas e 15 parafusos no braço esquerdo. As visitas do SAC também eram físicas…  O quarto sempre tinha alguém nas primeiras noites e tirando a idosa de 96 anos ao lado. As outras duas jovens que foram internadas ao lado sofreram acidentes de moto. A senhorinha quebrou o fêmur e devido a uma longa dieta de cálcio e uma saudável vida rural já estava se recuperando bem. Mas a mente distante tentava confeccionar um bordado ou tecido lá da infância. Costurava e buscava agulhas invisíveis enquanto falava com quem já se foi ou simplesmente não estava ali. A outra, a segunda paciente, estava com fome e contando a saga de precisar ameaçar chamar a assistente social para ser atendida já estava de alta, mas nada da família buscá-la.

Também houve a última que compartilhou o quarto com a gente. Uma interna com tornozeleira, aos 19 anos com três filhos e relegada ao medo, ao preconceito, ao julgamento e ao desinteresse dos outros. O olho direito com sangue, corpo ralado, a fala era a conhecida dos MCs. Afrontosa para se impor e conseguir o que quer, se virava como podia com a perna. Disse ter sido presa por estar na casa de amigos quando a polícia chegou. Enfim… a perna estava toda costurada, parecia começar a apodrecer e ela só queria ir pra casa. Não comia até a convencemos que comendo teria a recuperação mais rápida. Quando tivemos alta, ela ainda ficou… 

Lá, ao lado, e aqui, fora, pedimos a Deus por quem necessita, agradecemos o milagre da vida, da oportunidade não perdida de estudar, continuar, recomeçar e aprender o que Deus quer para nós.

8 comentários:

karoll disse...

narrado pela melhor pessoa ♥️

Unknown disse...

Nossa que visão vcs nos trazem heyy... Vida humana é nada é como um pó. Por isso não espero ter a vida dos sonhos para viver. Viva a vida que já tem.

Professora Maria Rosa disse...

Que lindo texto para refletirmos!

olharesdoavesso disse...

🥰❤️😘❣️❣️❣️

olharesdoavesso disse...

Obrigado

olharesdoavesso disse...

😃👏🏾

Guilherme disse...

Algo real,forte. A vida é um sopro,um novo sopro de ar nos pulmões.

karoll disse...

Primoo amado!!Obrigada por existir ..