sábado, agosto 17, 2013

Pernas podadas (miniconto)


Pernas podadas (miniconto)
por Rafael Belo

A Mentira pensava em todos os setes pecados capitais ao mesmo tempo. Via a espuma da raiva, o canto largado da preguiça, o tamanho da gula, a toda aberta da luxúria, se alongava pela altura do orgulho, ouvia a explosão da ira e procurava o esconderijo da inveja. Esta escondida em um ponto nos olhos, empoeirando a alma, entre as batidas do coração e rastejando debaixo da pele... Traiçoeira. Pronta a não deixar ninguém ter nada. Como ela, estava pronta para fingir por algo qualquer.

Ela não era a encarnação da mentira. Claro que não. Mas seu nome foi esquecido há muito tempo e pela sua ficha corrida, pelo seu currículo passando de boca a boca... A chamavam de pernas curtas ou pernas podadas e todos sabemos quem tem tais características... Bem, Mentira pensava e pesava sorridente o quanto era e desencadeava cada um do sete pecados capitais. Quantas mentiras contavam para esconderem terem sido enganadas por outras mentiras, por acreditarem e serem tolos os suficientes para "ajudar" esta que não vai longe pelos passos pequenos.

Viciada pelo sentimento da fingida esperteza, olhava seu feio reflexo e o achava bonito ao contrário de Narciso. Mas continuando a contrariar o mito achava o que não tinha bonito por demais e por mais que não tivesse, quem tinha deixaria de ter. Mas, o maior prazer dela era mesmo mentir e tanto mentiu... Teve de mudar de vítimas amigos. Só contava a mesma história três vezes, falsa como uma nota de dois reais e cinquenta centavos. Depois não conseguia nem mais ter retorno dos whatsapps que enviava... "Injustiçada", "incompreendida", partia para continuar a negar ser uma mentirosa incorrigível. Só não fazia o bem. A quase... Bem, a ninguém mesmo!

Tanto mentiu que surtou ao olhar no espelho e não ver mais a beleza, e sim algo terrivelmente feio. Foi à delegacia denunciar. Achou que o feio reflexo fosse um reflexo feio que estava ali para roubar sua beleza."Esteja presa sua Mentira", disse o delegado cheio de retratos falados, fotos, os tais ficha corrida e currículo. Sem entender nada continuou a mentir para sua esperteza, marginal, à margem do convívio e do bem-querer. Não procurou nenhum mentiroso profissional, não admitia concorrência. Preferiu mentir para a mente, que estava ali atrás das grades, dormindo em pé pela falta de espaço, para a própria proteção. E ela acreditou...!

3 comentários:

Ana Tapadas disse...

Um retrato fiel de tantos quotidianos...
Muito bom o texto.

bjs

Anônimo disse...

verdade pura!

Pérola disse...

Quantoas mentiras são verdades e vice-versa.

Gostei da fluência ritmada da leitura.

Beijo