sábado, setembro 21, 2013

Lugares errados (miniconto)




Lugares errados (miniconto)
por Rafael Belo

Ela piscou de repente e ficou na incerteza. Era a vigésima vez que piscava. Nas informações inúteis guardadas, se parabenizou por chegar a média de piscadas por minuto. Pensou: muito bem. Agora está no auge da própria lubrificação e além de impedir poeira e qualquer prejuízo aos olhos, não deixou que eu enxergasse o que vim ver. Sozinha na esquina riu da ironia. Há uma piscada atrás ela tinha certeza, mas os atos involuntários do seu corpo a sabotaram. Autosabotagem. E agora? Vou parar de respirar também?

Ficou, então, naquela esquina literalmente de olho na outra. Parecia ter nascido ali. As pessoas desviavam dela, às vezes sem nem perceber. Eram poucas que acompanhavam aquele olhar arregalado para uma luz forte hipnotizante. A vista dela começava a arder, coçar e tudo seguiu lacrimejando. Não tinha nada à vista. Forçou-se a piscar e foi para próxima esquina. Não queria estar em dois lugares ao mesmo tempo, mas corria atrás de estar entre o agora e o próximo instante.

Um surto de piscadelas se seguiu. Foi como se todos a vissem e ela saísse das sombras. Uma luz cheia no apagão da cidade. Mesmo com a coluna torcida para todas as posições possível, mudou o foco e olhava para todos que podia e muitos achavam aquilo paquera. Pisca daqui, pisca dali e ela começou a ver mais escuro que claridade. Estava em um decote enorme destacado pelo top que mal segurava os seios. Mais bem para baixo, uma microssaia quase incapaz de esconder a proa e metade da popa de fora. Ela chocava.

Estava distante do coletivo, era desejo. Não podia nem ser tão arrogante, pois se empinava tudo se deslocava. Se fosse muito subserviente, se abaixava demais e mesmo que fosse só um milímetro tudo aparecia. Mas, não tinha vergonha de nada. Bem... Quase nada. Ela podia fazer o que bem entendesse. Porém, algum dia em alguma dessas esquinas, tinha vendido seus valores, sua dignidade, seu respeito e tinha muita esperança de que fosse mais que trapos e pele.

Recentemente tinha a fissura de que se fixasse o olhar e não piscasse, enxergaria ao menos o respeito e assim estava indo de esquina em esquina, mas procurava pelos lugares errados, além disso, quando parecia que ia conseguir algo, piscava.

2 comentários:

José María Souza Costa disse...

Admirável, Rafael Belo.

Na situação em que encontra-se os desejos de cada um. Não sei se temos tempo a piscar. Tudo sonha-se. Tudo deseja-se. A crise da piscagem, pode roubar o prazer até, de desejar.
Abraços.

olharesdoavesso disse...

Precisamos encontrar nosso tempo e dar um tempo para ele meu caro. Valeu nobre. Abraços