sábado, outubro 05, 2013

Odor próprio (miniconto)



Odor próprio (miniconto)
por Rafael Belo

Lá estava ela se equilibrando sozinha naquele muro. Uma paródia das suas últimas três décadas de vida. Neutra. Aquele muro era seu purgatório da solidão onde ninguém a contestava. Ela o construiu tijolo por tijolo talvez para se aproximar do céu e se distanciar do inferno lá embaixo. Mas o muro alto só a afastava de tudo e dividia cada coisa. Menos ela, sem qualquer crise moral. Se protegia no silêncio e na ausência. Se bem que ali não havia proteção alguma. Seus pequenos pés cabiam exatamente no espaço que criou. Ali seu purgatório parecia ruir sem ela saber. Era frio como o deserto no início da madrugada.

Tudo que era sombrio parecia se aproximar. Apesar da falta de cantos, tudo aparentava quina naquela neutralidade. Mesmo sem nada para criar sombra, não havia luz por ali. Lá nas suas alturas ela não se envolvia... Com nada, com ninguém. Suas memórias pareciam uma noite sem luar e nem uma estrela sequer. Podia se considerar invisível independente da hora do dia. Nem lembrada era. Às vezes era a própria sombra. Só nunca se dava conta disso. Seu natural era neutro. Os ruídos do muro passavam longe dos ouvidos dela, mas mesmo assim ele estava rachando.

O inferno estava mais próximo a cada dia e ela preocupada em manter seu equilíbrio circense.  Sorrindo o mesmo sorriso para todos no mesmo bom dia diário. Sem saber estava na propaganda da Ivete Sangalo: também era escrava. Estava acorrentada a agradar a si e aos outros. Todos os outros. As rachaduras engoliram muitos metros daquele muro. Um muro sem qualquer tipo de alicerce. Apenas construído para isolar. Mas buracos surgem em todo lugar por toda parte e, mesmo ignorando, muito dela já fora mastigado pelos buracos.


No primeiro vento, trazendo chuva de folhas, o muro desabou com o som de um baque seco. Já não tinha tanta altura, aliás, aqui entre nós, nunca foi mais que um meio fio. E esta queda vazia só foi desequilíbrio direto para o inferno de gelo fino. Era uma queda sem fim de um abismo interno cheio de nada, repleto de um vazio tão próximo da inexistência que podia até ser... Era a primeira fase da negação mais extensa daquela grande criança mimada, que logo na segunda fase de ira tentava enxergar culpados e sem perder tempo começou a negociar sua situação neutra, mas já estava se arrastando na beira da depressão quando se levantou e aceitou ser o próprio cheiro de enxofre.

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