quarta-feira, fevereiro 18, 2015

Dois pássaros em um (miniconto)


por Rafael Belo

Chovem cinzas compulsivas nesta quarta-feira. A beira de um abismo balança, desequilibra, embaça a vista e engole a cidade de ressaca. Parecer ser inteira, mas é de gole em gole até a virada. Não há mais desculpas nem nada. Pela primeira vez se ouviu pouco o “fato” do ano começar depois do carnaval, mas o dizem. Neste dia pela metade não há verdades. Não há meios e aqui, ela e ele, deixaram de tentar ser inteiros. No mais alto ponto paulistano, eles jogaram os panos. Vão cumprir o pacto.

O ato no antigo Mirante do Vale, na avenida Prestes Maia, hoje chamado de Palácio Waldomiro Zarzur era o número deles. Eles estavam a 170 metros do chão, prestando atenção e, às vezes, balançando os pés. Até pensaram no famoso Edifício Itália, mas dois metros os fizeram mudar de opinião. Além disso, eles eram as sobras da Geração X. Talvez os únicos vivos a saberem do segundo incêndio mas fatal depois do histórico ocorrido no Edifício Joelma. O Palácio Zarzor Kogan, primeiro nome do Mirante, ainda chamuscava neles.

Fizeram suas juras de Amor e indignação naquele ponto mais alto, mas o tamanho já não era o mesmo. Nos anos 1970 havia mais andares e eles estavam no último. Não havia terraço na época. Eles sobreviveram e ninguém vivo mais (talvez) saiba desta história. Estava queimado na pele o pacto feito por lá e eles cumpririam. Para eles nunca houve morada fixa, muito menos física. Eles estavam um no outro como as cinzas lembranças deste dia.

Agora com todos os panos descendo lentamente naquele vendaval anunciando mais tempestades brasileiras, eles tremiam. Estavam nus e percorreriam a cidade enquanto a ressaca ocupava até os policiais mais honestos. Não queriam chorar, a vontade era apenas provar que a hipocrisia tirava a fantasia e se escancarava novamente depois do carnaval. E no terraço do mundo deles eram dois pássaros em um. Há muito estavam voando. Aquelas únicas almas duplas queriam ensinar a voar. Só nas asas, não haviam penas. Não havia nada que os cobrisse ou escondesse. Não mais.

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