sexta-feira, novembro 22, 2019

Eu Cigarra (miniconto)









por Rafael Belo

Fui chamada de anomalia. Onde já se viu uma cigarra fêmea que canta? É papelão do macho cantar para atrair as fêmeas… Eu tenho duas caixas acústicas ainda. Uma no abdômen e outra no peito. É a correção da natureza de dar algum tipo de vantagem para os machos. Quando eles vieram me isolar, me confrontar, me exterminar… Só avisaram depois. Nunca houve aviso. Arrancaram minhas asas e me jogaram no chão…

Enterrei-me e esperei a compreensão da próxima geração. Não aconteceu. Foi o mesmo. Repetição. Enterrei-me de novo. Esperei. Desta vez esperava respeito. Não houve nenhum.  Pelo contrário. Enterrei-me novamente. Ainda tive esperança e esperei aceitação. Foi pior… Na próxima vez esperei por tolerância… Agora na milésima vez aprendi.

Não preciso esperar. Nunca precisei. Eu era única. Hoje sou milhares. Já não nós enterramos mais. Saímos anônimas por aí. Voamos silenciosas. Mesmo quando arrancam nossas asas, eles acabam descobrindo que não são asas que nos fazem voar. Com sucesso nos transformaram em escravas para botar ovos e morrer em seguida. Dissemos não a brevidade. Mas tendo que ser breve, que seja eterno.

Eu sou a única sem fim. Meus ciclos não terminam. Eu me enterro e continuo. Toda vez minhas asas são arrancadas. Quando conheci La Fontaine, aquele francesinho distorceu todos os fatos e as traduções, me fizeram dependente da formiga. Rebaixaram minha arte e fizeram parecer ser tudo gratuito basta nos alimentar e massagear nosso ego. Todo o trabalho ficou como unicamente das formigas. Obrigado La Fontaine, muito obrigado…!

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