segunda-feira, novembro 18, 2019

Morremos sem asas








por Rafael Belo

Deitei na rede. Adormeci. Acordei com uma imensa cigarra com as asas danificadas sem poder voar. Lembrei que elas ficam na terra a vida toda e só saem para viver um dia e morrer. Novamente. Isto é brevidade. Voltei a dormir. A cigarra cantou até morrer. Acordei e ela estava morta. Veio-me a mente a fábula a Cigarra e a Formiga. Uma canta e se diverte. Outra trabalha em dobro para sobreviver no inverno. Já nós, trabalhamos para nos alimentar e continuar a trabalhar. Cantamos para relaxar? Para La Fontaine trabalhamos para nos livrarmos dos suplícios, das coisas que nos torturam simbolizada pela cigarra e para não aturar zombarias referenciadas nas formigas. 

Imaginei o quanto nos incomoda a postura dos outros sobre nós, assim como a fala e a opinião. Imaginei o quanto danificam nossas asas, mas nunca conseguem as arrancar. Analisei o tanto de trabalho ocupando quase integralmente nosso tempo e no tempo que sobra fica ocupado pelo cansaço ou algum tipo de anestesia.  Então, passei a entender a natureza das cigarras e sua insistência em encontrar melodias no próprio canto onde muitos só veem e ouvem incômodo e zumbido. Afinal, são 120 decibéis… O equivalente a decolagem de um avião diariamente ao amanhecer e ao entardecer. O canto atrai as fêmeas que morrem depois de botarem os ovos nas árvores.

Esta vida breve é ainda mais breve para as formigas que vivem de 1 a 3 anos - menos as rainhas que vivem 30 anos. Elas tem dois estômagos. Um para elas próprias, outro para armazenar e dividir com a colônia. A sabedoria da Natureza coloca cada qual em sua missão no ciclo da vida. É preciso muitas vezes gritar para nosso canto chegar a nossa máxima potência e sempre há algo além quando chegamos ao limite. Isso me levou a olhar novamente para a cigarra morta e pensar se aquele era realmente o dia final dela, se foi naquele dia que ela escavou para fora da terra para cantar em uma árvore e o que destruiu as asas dela.

Neste meio tempo, pesquisei para ver se eram corretas minhas informações. Descobri que as cigarras podem viver até 17 anos debaixo da terra e depois quando saem vivem até cinco semanas. Outras saem todos os anos. Ela se alimentam da seiva das árvores. Assim, as 1500 espécies podem ter a vida mais longa entre os insetos e só os machos cantam. Cada canto um propósito. Aquela morte ali certa, precedida de uma agonia para voltar a voar reforçou a necessidade de usarmos nossas asas porque morremos sem asas. Morremos quando não podemos voar e cantar. Ficamos no despropósito, na cena muda quando deveríamos falar e cantar sempre aquela que desejamos o bem e o melhor no Amor.

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