A arte da fome (miniconto)
por Rafael Belo
Ela estava com um apetite voraz e
mastigava mal. Engolia bem, mas quase engasgando. Ao fim passeava a língua pela
boca, procurava com a ponta os vãos entre os dentes. Nesta acrobática imagem
bucal queria tirar as frustrações presas na boca. Depois voltava a comer como
se nunca mais pudesse fazê-lo, mas não estava saramandando, portanto nada de
explodir feito a Dona Redonda. Nem tinha sinais de gordura. Era só uma gula
psicológica com sintomas direto no estômago. Enquanto ruminava a boca vazia e
mordia as bochechas pelo lado de dentro, pensava.
Era a própria angústia solitária. Já
há alguns dias estava nesta encrenca. Sentia uma fome incontrolável. Tamanha era
que podia jurar que até os outros mais distantes podiam ouvir seu estômago. Insaciável,
mastigava até os músculos das mandíbulas travarem e mal conseguir abrir a boca,
portanto não falava mais. Para alguns era uma bênção, pois em seus dias “normais”
este ser faminto matraqueava como uma rádio em frequência AM durante final de jogo
de futebol, lotado, com diversas invasões de indigentes pelados, com previsão
de prorrogação e pênaltis.
De repente ouviu sua mente imitar
Deus. Nem só de pão viverá o Homem, minha
filha. Foi, então, comer pão para garantir e tudo ao alcance. Até não
restar mais nada. Aquele, agora, conhecido apetite voraz realmente parecia ser
interminável. Novamente seu estômago roncou, mas ela se encolheu porque não era
só um ronco. Era toda uma palestra ministrada pelo “senhor saco sem fundo”. Encolhida.
Envergonhada. Rezava para ninguém o ouvisse. Ninguém mesmo. Nem tão, tão perto.
Nem tão, tão, tão, tão distante. Além de correr o risco de ser confundido com
sons de outros locais mais ao sul, parecia a localizar geograficamente com
imagens ao vivo em um satélite Obamaespião.
Quando já se entregava ao
autocanibalismo, que jurava estar acontecendo neste instante nos recôncavos do
seu interior. Ouviu a imitação divina de sua mente de novo. Minha filha, nem só de pão viverá o Homem,
nem a mulher, mas... “Caraca meu”, ela pensou interrompendo sua mente,
estou usando licença poética”... Como nunca foi de imaginação cada coisa era
aquela cada coisa e nada mais e nada menos e nada, nada.
Resolveu fazer uma coisa inédita. Não
iria mudar o mundo, mas quem sabe sua... Foi até sua pilha de livros e livros e
livros e livros nunca sequer tocados, soprou a poeira, entrou em uma crise de
tosse e assim que parou de tossir começou a ler Um artista da fome, Franz Kafka. Imediatamente tudo silenciou
dentro dela. Ela se assustou e reclamou com sua mente. “Pôxa, da próxima vez
seja mais direta com sua imitação...” Voltou ao silêncio e a um novo e
surpreendente apetite voraz onde parecia nascer sua imaginação.
2 comentários:
Admirável, bom dia.
Um texto brilhante. Gostei mesmo, foi da fome psicológica. Essa que deveria chegar até aqui em casa. Confesso, que apenas, mostraria o Mercadão de peixe, e tudo estaria resolvido. Fim de mês ? A mesma grana inicial. Mas, deixemos as minhas particularidades de lado.
" Ler, é uma Arte."
Amei. Abraços.
OO querida amigo versado. as particularidades não devem ficar de lado rs ou ficamos também. Muito obrigado nobre. abraços
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