sexta-feira, junho 22, 2018

já consigo sorrir (miniconto)





por Rafael Belo

Não sei quanto tempo demorei para encontrar minha casa. Eu sempre esqueço as coisas, as pessoas, os compromissos, os nomes, até minhas funções no trabalho. Agora já não durmo há muito tempo. Por isso, não paro de perguntar o que acontece? Eu tenho certeza que morri. Eu olho para todo mundo e não consigo formar pensamentos e palavras. Tudo fica mais frio na minha presença. Frio e lento… De repente acabou o jogo.

Eu me inventei outra por tanto tempo… Já não sabia ser outro alguém. Quando eu percebi ser um jogo e eu era uma das jogadoras principais. Já não sabia mais me portar de outra maneira, e ver as pessoas que pensava conhecer manipulando este jogo me fez passar mal. Este surto de naturalidade me afronta. Eu acerto apenas, nunca erro…  Este é meu dilema. Acho ser o suficiente, mas isto é falha, é imperfeição. É uma piano rompendo o silêncio tocando minha música favorita. Eu sento e choro. Não sei quanto tempo guardei o choro…

Não entendo nada de inglês. Mas esta canção, vem carregada de uma voz triste. De uma tristeza tão profunda e determinada que vi o quanto entregou a felicidade ao outro e agora vive arredia na contenção. Não quero isso, não. Se eu estiver viva, vai fazer sentido eu expor o jogo e seus jogadores? Até os profissionais são amadores. Atores fadados ao vale à pena ver de novo de si mesmos e ao assistirem pensam talvez não valer...Naturalmente eu percebi não ter identidade.

Na verdade. Fazia caras e bocas gritando para todas: aja com naturalidade. Havia mesmo era a vontade de tentar enxergar como era esta tal naturalidade. E, olha só, eu estou aqui, parada na varanda da minha casa e muito perturbada. Tenho memória criadas de eu ter feito esta fachada. Há memória afetiva me invadindo, mas, à olho nu, fico aflita porque eu jamais criaria uma fachada assim…! Estou me vendo lá dentro! Devo ter vendido minha alma para o Tempo e agora assombro algum corpo sem alma ausente de 1,70 cm, pele indeterminada, bronzeada, olhos difusos parecendo feitos de tons noturno do universo, cachos esparramados até o braço, seios fartos e arrogantes, daí pra baixo é tudo curvilíneo. Quero saber em qual curva me perdi e, principalmente, se vivi ou morri. Não avalio nada disso como ruim. Vim até aqui sozinha e já consigo sorrir.

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