segunda-feira, junho 30, 2014

Dois graus a menos – por Rafael Belo












Quanta vida esconde um sobrevivente das ruas? O medo circula com características de raiva. Baba e rosna. Morde e infecta. Quando aprofunda os dentes e arranca pedaço de carne, jorra o sangue... Quem sonhou morar nas ruas? Ninguém nunca quis a companhia do trepidar dos dentes, do estremecer do corpo ou conversar com o frio soprando impiedoso no ouvido e pela pele queimando como se um fogo gélido estivesse aceso e nós fôssemos água e puro álcool. Tudo se alastra com a terrível intensidade de um pesadelo do qual não se acorda.

Toda a roupa é puída, rasgada, velha, encardida ou assim ficará. As pessoas tentam fazer os moradores de lugar nenhum serem invisíveis e os temem. Não sabem da história, não querem saber das necessidades, não dirigem um olhar de dignidade para elas. Quantos agasalhos são apenas estética ou estão na fila para não os repetirmos no período de inverno enquanto muitos agravam os males já existentes no corpo e multiplicam os da mente ou morrem de frio. O inverno começou há nove dias e as temperaturas vem caindo.

É seco. É frio. Nós estamos agasalhados, quentinhos. Lá fora as ruas não são piedosas e nem nós. Basta baixar dois graus a temperatura do corpo e já temos hipotermia. A queda de temperatura é sinal de urgência no hospital. O risco é de morte. Há muitas vidas expostas de maneira absurda nas ruas pelo consumo de álcool, drogas, violência e pela sobrevivência esquecem a criatividade, perdem a vontade, perdem a fé e deixam também de acreditar nas pessoas. Mas quase sempre basta um gesto generoso e a vida desta pessoa é devolvida.

Paramos de torcer o nariz no nosso medo travestido de preconceito. Há moradores de rua que vendendo bala voltaram a ser visíveis e mais.  Há 29 anos um morador de rua carioca queria comprar remédios para a esposa grávida, recebeu o empréstimo de um porteiro equivalente a R$ 12 e no caminho da farmácia resolveu comprar dezenas de balas.


As vendeu em minutos, comprou os remédios e pagou o porteiro. Sem estudos, mas com imensa fé e vontade bolou planos de marketing e ensina hoje em palestras a empresários ao custo de 12 mil reais, como ser um vendedor de sucesso. Ganhou até um prêmio em Nova York “maior especialista em vendas do mundo”. Talvez a falta de agasalho em um dia de frio tivesse levado dele dois graus e com  dois graus a menos a vida dele também pudesse ter ido e só sobrasse uma manchete fria em algum jornal não lido... 

Um comentário:

Anônimo disse...

Verdade...mas também temos muita solidão e frio em quatro paredes...que pode ser aquecida com o som da voz de pessoas amadas que ficam invisíveis e esquecidas. Parabéns pelo texto!mamys