por
Rafael Belo
A
cidade toda acumulava mortalhas. Era uma forma de lembrar não só obviamente
seus mortos, mas o peso jogado na vida. Os verdadeiros donos da situação eram
ovelhas deficientes deformadas pelos absurdos cometidos livremente pelos seus
representantes, estes seriam um bando de porcos orwellianos, mas George Orwell
soltaria seus bichos revoltados sobre nós se fizéssemos tal comparação. Então,
naquela manhã uma mortalha diferente foi proposta e aprovada por unanimidade
com a presença da população. Havia tanto cansaço nos enganados que os enganadores
já não tinham mais vergonha.
As
mortalhas não vestiriam mais os corpos reprimidos a partir daquele momento. Todos
usariam mortalhas adaptadas e a primeira tinha obrigatoriedade imediata de
utilização. Funcionários terceirizados já estavam à postos com vendas de
pressão feitas de malha de aço medieval. Era como vestir fibras de aço nos
olhos e só quem era responsável por vesti-las nos cidadãos sabia a combinação
para retirá-las. Sem nem ver o que os atingia o mundo já era tingido de
escuridão novamente. Ninguém mais saberia dizer como era a própria imagem.
Aquele
peso no olhar esvaziou as ruas. Apenas os porcos, digo, os representantes
daqueles cidadãos eram vistos e viam. Claro, que até aquele momento fatídico,
todos cometiam suas pequenas corrupções nem que fosse para chegar mais rápido
no sinal fechado... Mas, as privações nunca haviam afetado tão diretamente um
órgão humano. Estavam todos depressivos e não saiam de casa. Não havia sequer
vontade de levantar da cama. O assalto descarado da cidadania era a violenta consequência
de várias ausências daquelas pessoas.
Ver
apenas a escuridão se tornou um costume como a depressão. As notícias
adulteradas tinham o cuidado de chegar ao mundo sem falar da política, sem se
vangloriar de nada, mas havia palavras cifradas incitando todos os demais a
tramar as privações dos sentidos da sociedade. Em pouco tempo, as mortalhas se
espalharam como praga. Não era mais uma cidade cega, agora havia cidades
surdas, cidades mudas, cidades inodoras, cidades paraplégicas, cidades
tetraplégicas e todo o povo que se achava esperto, malandro, desapareceu. O plano
dos enganadores era expandir aquele negócio lucrativo primeiro para países
próximos e, então... Bem a ganância sempre quer dominação total com uma vista tranquila
para fingir sossego.
Um comentário:
Muito bom o texto....retrata bem o momento!
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