quarta-feira, dezembro 07, 2016

Ninguém viu (miniconto)



por Rafael Belo

Ninguém caminhava pelas ruas àquela hora da manhã. Talvez pela quantidade de carros, talvez pelo clima deserto, provavelmente por ambos. Por isso, quando aquele casal surgiu anonimamente no próprio estilo de escuridão, poucos motoristas prestaram atenção. Todos temos nossas limitações, nossas escuridões, nossas deficiências, mas quem imagina eliminar quem possui deficiências na sociedade atual? Afinal, não somos tribos... Falando deste jeito... Preciso discordar de mim mesmo. Somos tribos e cada vez mais de uma pessoa só.

Algumas pessoas se rendem a escuridão em si e se satisfazem apagando as luzes do mundo. Àquele casal era cego... Andava perigosamente na rua ignorando a cegueira de quem enxerga. Mas, os dois pressentiam uma mudança brusca na já adaptável vida deles. Há quem acredite em intuição e há quem a tenha. Os sentidos de quem é privado de um são altamente apurados para compensar e o ser humano pode ser incrível e terrível. Naquela manhã, ambas as faces da humanidade se chocaram.

Foi um choque capaz de tremer por dentro quem estava próximo. Mas, na pressa poucos prestaram atenção realmente. A reação era robótica, totalmente mecânica e distante: mais um acidente? Espero que ninguém tenha se ferido. Segue em frente... Mas, sim. Houve feridos. Havia uma detestável pessoa responsável pela morte de tantas pessoas com alguma deficiência física. Elas eram consideradas desaparecidas porque esta escuridão ambulante “dava um jeito” nos corpos. Quando ela viu o casal no meio fio, por falta de calçada, andando confiante e tão amoroso com as bengalas – apesar de todos os pesares – ele simplesmente acelerou e viu a imagem dos dois aumentar, aumentar, aumentando, então, o impacto e o vazio.


Não foi o casal com os sentidos apurados atropelado. Aliás, ninguém foi. A mente de uma escuridão ambulante só pode ser distorcida e delirante. Realmente, ela partiu para cima acelerando no maior estardalhaço, mas Ame percebeu antes e sem pensar muito jogo seu Jeep, alguns metros antes do casal, na lateral daquele Sport com o objetivo tão repugnante. A motorista Hate foi arremessada na parede da fábrica e já se misturava ao frio da lataria frágil antes de toda a fábrica desmoronar. Ninguém viu onde foi parar o casal.

Nenhum comentário: