Lágrimas
e fumaça (miniconto)
por Rafael Belo
Caíam cinzas de toda
parte. Aquele fogo controlado virou descontrole. Estava vivo. Um demônio
incontrolável feito de chamas. Um rosto desfigurado no calor derretendo a pele
dos mais próximos. Nem brasas sobravam das vítimas. Não se via nada definido
quando se via. Eram lágrimas e fumaça. Cinzas e pó. Expiando o pecado louco de
cada crente da imposição, da violência verborrágica, ou simples falar
desembestado, da conversão. Bastou um fósforo quase úmido e Mitara Tártaro
confessava aos gritos sua piromania.
Mas seus gritos não
eram só confissões. Haviam palavras desconhecidas pelas Pessoas saindo em um
som arrastado como um mantra cantado por um abismo. Uma hipnose entre as vozes
dela. Mitara foi a primeira a virar cinzas e no momento seguinte estava ao
vento. Tudo. Cada lugar. Começou a exalar álcool. A maior destilaria de absinto
do universo. O odor era tão forte quanto jamais um bêbado, ou o alcoólatra mais
velho em atividade, experimentaria sentir. Nem deu tempo de pensar em
identificar a origem do cheiro. Lágrimas ardentes escorriam abundantes e,
então, fumaça. Cinzas.
Foi o vento com o fogo
vivo. Ambos sorriam e sofriam na bipolaridade dos seus atos. Espalhavam-se tão
rápido. Nem a luz chegava antes. Também tinham idolatria pelas cinzas de
Mitara. Ela os libertou. Ficaria com eles por toda parte. Tanta ardência, calor
e pressão trouxeram outro elemento. Chuva. Mas a água evaporava ainda nas
nuvens recém-formadas. Nem por isso deixara de chover. Chuva de cinzas. O vento
não a deixava cair e rasgando o tempo com a noção de realidade, ela corria o
mundo. Aumentava sua quantidade. Até tudo ser fumaça e cinzas.
Logo a terra queimava
por inteiro suas primeiras camadas. Também se levantara com os outros três
elementos. O vento a transformou em um abafo. Morreu o fogo. Começou a chuva. E
no momento do toque, entre as cinzas de Mitara e o solo. O maior medo passaria
a tomar conta se alguém, agora, não fosse cinzas. Um pesado silêncio faria cair
de joelho os quatro elementos, se eles ao menos tivessem pernas. Depois do
fogo, foi-se a chuva. O vento, ainda ardente, assoviava desvairado. Secou a
terra cinzenta. Só esta sobrou. Mas estava tão emaranhada com o resto do
mundo... Não tinha mais a mesma identidade. Restara no planeta uma folha de calendário.
Acusava fevereiro de um lado riscado e março. Mas era consumida ao poucos. Se sobrasse
olhos e compreensão... Seu último resquício... Acusava... Quarta-feira de
Cinzas. Depois, até esta se foi.
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