Outros lados (miniconto)
por Rafael Belo
Seus olhos doíam. Não pela
luz forte, mas pelo constrangimento. Não se olhava no espelho há anos e a dor
só aumentava. Uma vergonha. Venâncio, o Ven, jazia em vida seu olhar vazio. Arrepiava
quem passava por perto. Como um surpersticioso mau presságio... Ele parara com
tudo. Decidiu se acorrentar a livros e fotografias. Aos poucos foi perdendo o
vigor. Não por falta de água ou alimentação. Sempre aparecia alguém enxergando
uma causa justa em seus feitos e o hidratava. Ninguém o deixava sem comer. Mas durante
todos estes anos, as palavras, as paisagens e os silêncios o alimentavam ainda
mais.
Fracasso e desistência
passavam a rodear sua imaginação como personagens animados tonteados. Seu centro
de gravidade se foi e quase a sanidade acompanhou. Ele parecia sempre
embriagado. Mas seus olhos estavam sempre arregalados. Como estava em um local
isolado, mesmo no centro da cidade, as autoridades decidiram deixá-lo em paz. Uma
decisão polêmica. Gerando debate pelo mundo sobre direitos, livre-arbítrio, o
poder do Estado, público e privado. Porém eram só palavras vazias. Ven se
transformou em um caso de estudo. Um lunático preso ao único olhar da lua.
Sua história era
desconhecida. Apenas conseguiram descobrir duas coisas: perdera tudo e tudo
eram livros e imagens. Cada livro tinha um valor. Era um sentimento de Ven, um
detalhe tanto do seu passado quanto do futuro e ele se perdeu nestes detalhes.
Suas imagens se moviam como poesia viva mesmo sob seu olhar vazio... Lá no
fundo ele começava com os primeiros alvos raios. Quando a alvorada chegava ele
era branco, uma página viva esperando as primeiras palavras do dia. Assim ia se
autocolorindo com palavras novas... Ele as enxergava nas imagens, paisagens.
Quando estava realmente
só, alisava as correntes. Gostava daqueles elos. Sentia o metal frio em algumas
partes, morno em outras, mas sempre quente na sua pele. Seu olhar, então,
parecia ressuscitar aos poucos, um brilho de cada vez, uma projeção de sombra
em novas ângulos, uma cor a cada hora, uma variação de palavras a cada
minuto, uma intensidade poética a cada vírgula, em todo silêncio... Então... Chegava à noite. Preta, azul ou cinza, às vezes branca... Naquela
imensa tenda montada - pelos políticos da cidade e demais autoridades - para protegê-lo.
Ele queria morrer. Já não sabia mais a própria idade. Porém, quando a madrugada
avançava e a vontade se intensificava, o primeiro alvo raio solar o acariciava
e o fazia nascer novamente com o mesmo sol, mas diferente. Era este detalhe o
segurando por teias invisíveis todos os dias, por todos os seus lados. Mas,
algo sempre o alimentava. Porém, para o mundo, de repente, ele já não era novidade,
não era notícia. Era parte da paisagem.
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