terça-feira, março 31, 2015

descosturas

cofia o rosto o cabelo as barbas do Tempo
fiando fiéis fios das sombras
tombas a desfiar todas as costuras do firmamento
não há nenhum momento se perdendo

o mundo vai passando por nós
atando frios na barriga e a confiança intriga
lança sua lança a nos transpassar
o medo balança

até quem não dança aprende a dançar
pega o fio da navalha afia a agulha e vai costurar.


(Rafael Belo, às 21h25, segunda-feira, 30 de março de 2015).

segunda-feira, março 30, 2015

Do outro lado


por Rafael Belo

Do outro lado da rua espreita o desconhecido e deste lado também. Às vezes o medo se esconde de nós mesmos, mas não nos deixa. O problema não é ter medo, este não é ruim pois nos deixa alerta, atentos a tudo e pode nos salvar. No entanto, temer outra pessoa é prisão. Já ouvi o grandioso sonho de alguém que mora nas comunidades e é simplesmente não temer outro ser humano apenas por este estar passando na mesma rua.

Esta é uma sensação generalizada mesmo em quem causa medo porque o sente ao extremo também. Criamos uma bolha de ausências e não sabemos mais sair ou permitir vivas presenças. São tantas aparências criadas, imaginadas que podem acabar na mais leve brisa ou com um cumprimento. Há um terrorismo social fantasiado por toda parte, sobretudo midiático.

Assim, o coração constantemente cala acelerado, alterando a respiração e a dilatação das vistas, mas quem em sã consciência confia no desconhecido? Não é tratar diferente ou com deferência, é simplesmente não julgar. Dar oportunidade para conhecer porque tudo nos é desconhecido até o contrário acontecer. Isto só acontece com o tempo.


Com o tempo poderemos deixar de temer outro ser humano pelo uso inverso de suas capacidades. Usaremos o medo como nosso aliado, não o banindo mais entendendo o motivo dele estar ali e deste também ser relacionado com nossos poderes. O que podemos ou não fazer ou melhor o que devemos ou não fazer está na fragilidade da nossa confiança em nós mesmos. E como fazer algo sem realmente confiar?

sexta-feira, março 27, 2015

Perturbação (miniconto)


por Rafael Belo

Mais um ônibus quebrou naquela manhã de rodízio. Mais uma vez a correria. De um ônibus lotado para outro correndo para tentar se encaixar. Mário João era o único sem fones de ouvido procurando outra distração e isolamento, mas mesmo assim ouvia a música dos outros. Uma população espremida que logo não precisaria fingir surdez. Um som no início indecifrável ruía de algum lugar. Se até o “enfonados” ouviam imagina Mário João.

Sempre há formas de piorar um dia ruim... Pareciam raspar uma lixa em um quadro negro sendo fritado em óleo fervente. Todos acordaram, mas apesar de incomodados ninguém manifestou a visível indignação. Porém, riram com um doce sabor frio quando em mais uma freada brusca o sem noção foi arremessado pelo corredor do ônibus... Mas, o infernal ruído continuava queimando os ouvidos.

Mário João imaginou qual seria o caminho da verdade. Viu-se chutando o ruidoso incômodo. Pensou em chutar, quebrar apenas aquele celular e ser ovacionado pelo público obrigado a brincar daquele lego sem graça com assustadora trilha sonora. Afinal ele faria a lei ser cumprida e subiria às graças dos sofridos do busão, mas foi somente verbalmente grosseiro para o júbilo dos inativos. Perdeu a paciência...

Foi pelo caminho do meio assim que o ônibus seguiu acima do limite de velocidade, não queria tesouros. Agiu como um cão perturbado por horríveis sons agudos. Mordeu. Tinha raiva. Preferia o som do motor desregulado e entupido do coletivo abafando até os pensamentos a tudo isso ou aquilo. Depois disso, borboletas o cercaram e ele apenas apreciava silenciosamente o silêncio... Quem sabe poderia finalmente dormir, o caminho até o trabalho é sempre longo.

quinta-feira, março 26, 2015

Marejadas




Onde estão minhas borboletas triste cão?
estes teus tristonhos olhos melancólicos em arrebentação
encontro das águas doces e salinas
me engolem na sina das brumas da manhã

nada nos pertence em consciência sã

somos metal em maresia obstáculo em corredeira [arritmia]
as asas livres das borboletas a quem pertencemos
batendo em demasia [vivedouro]
...Verdadeiros tesouros [fonte] em contínuo estar
no infinito caminho que arrefecemos no horizonte
para onde vamos voar...

(Rafael Belo, às 07h47, terça-feira, 25 de março de 2015).


quarta-feira, março 25, 2015

Borboleteando (miniconto)



por Rafael Belo

Havia fumaça por toda parte. Olhos ardiam, respirações se afogavam e o crepitar também ressoava. Mas, nada queimava. Era tudo perfumaria, puro placebo. Arremedo remendado de quem nada tinha, mas inventava. Caçava lagartas como se já fossem borboletas. Nem uma coisa nem outra estava lá. Uma densa neblina invadia o dia e se espalhava.

Criança de cidade desmatada não conhece nada de perto. É tudo na ponta dos dedos, nas imediações do teclado. Mas aquela inocência tão assassinada por aí, chacinas diárias guardadas em valas rasas para a enchente arrastar e ninguém poder enxergar ou alegar existência, é fuçada... Uma baita de uma esperta. Uma esperteza natural feita para adormecer.

Mas, então um leve roxo topada de pé na quina da porta em um branco leite espumante tirado na hora se transforma em pista móvel de pouso de uma borboleta e pronto. Desperta a inocência adormecida. Daí não adianta ralhar com ela que não vai embora de jeito nenhum, não dorme mais nem com chá de camomila nem com casca de maracujá. O efeito borboleta faz toda a fumaça se dissipar e a neblina rareia até desaparecer.

Sumiu e pronto, o mundo está aí pronto para se maravilhar com as asas da criança se a criança se maravilhar com as asas do mundo também. Uma troca constante focando e desfocando para esta criança ser liberta... Ah, como julgam a inocência e a culpam de ser besta e boba e chata e feia... As crianças sim sabem viver. Curiosas e ousadas. Vê aí essa redescoberta? Tem todas as cores imaginadas em um sorriso incontido em boca passional. Lá vou eu borboletear em outro quintal.


terça-feira, março 24, 2015

Liberta fumaça



Segue o fluxo no luxo da locomoção
não há pontos finais nem paradas estamos em desembalada continuação,
reação aos impulsos rápidos agarrando nossos pulsos, drásticos,
em plena encenação.
Desbota o verde, olha, anota, desloca a poda para a sola
e só pisa no som seguinte,

as borboletas são palpites de fumaça
tragando nossos pulmões em massa
às plenas multidões então passa
molha a chuva ácida, isolando-nos, trazendo a eletricidade estática
para a dispersão...

Borboletas de fumaça em suas coletivas asas são os caminhos da libertação.

(Rafael Belo, às 19h33, 23 de março de 2015, segunda-feira).

segunda-feira, março 23, 2015

Neblina no verde


por Rafael Belo

São muitos caminhos terminando no mesmo lugar, mas ao chegar lá não há ponto final simplesmente porque não podemos parar. Ao chegarmos são tesouros diferentes a nos esperar, a penetrar nos nossos olhos revelando uma melhora sem fim após a conclusão de uma etapa. Estamos constantemente nos lapidando e aprendendo a estender a mão diariamente, não recolhê-la.Há sempre o verde em algum lugar e precisamos podar cada excesso para as mais belas borboletas pousarem.

Sem poses a registrar apenas o entendimento da inexistência de preços, são valores cada gesto partindo de nós, mas, infelizmente, vamos nos vendendo aos poucos. Assinamos contratos sem ler nas entrelinhas e vamos desmatando nosso verde colocando preço em tudo e desvalorizando os valores reais. Realmente sem saber as consequências porque a distância é este caminho de se encher de nada.

É preciso esvaziar. Dissipar a neblina surgindo diariamente de repente no meio de um domingo colorido e ensolarado. Pairando nos nossos olhos, pesando em nossas mãos como planetas inteiros particulares, invadindo nosso corpo para encobrir o coração e se misturar a alma de uma forma a nos confundir. É fria a neblina a nos isolar dos contornos e profundidades em nós mesmos e em cada pessoa e lugar a nos rodear.

Longe desta neblina, somando um passo ou dois, estão todas as borboletas pousando, polinizando e colorindo contornos e conteúdos. Este bando de borboletas ou panapaná só precisa ser avistado para a neblina se afastar pelo efeito do coletivo de suas asas e, quem sabe, sentiremos como se enxergássemos realmente pela primeira vez porque cada um tem seu próprio tesouro no caminho da verdade.

domingo, março 22, 2015

Escalando montanhas (resenha)


por Rafael Belo

Nossa vida é um conto diante de seus inevitáveis sintomas. Na nossa inevitabilidade pensamos gostar de coisas curtas, líquidas, mas talvez seja apenas nossa maneira de lidar com tudo prolongando ou encurtando o mais rápido possível. Por isso, há muitos caminhos para a verdade dentro da retornável caverna de Platão e suas alegorias feitas das nossas sombras e das sombras de tudo que acontece fora de nós. A Verdade É uma Caverna nas Montanhas Negras traz à tona a família, a confiança, a jornada, a sobrevivência e o que está no fim do caminho.

Neil Gaiman conta seu conto levemente com Eddie Campbell nos pintando os traços da aventura com sobras e cor. Adentramos na história imaginando como é perdoar a si mesmo somente e as consequências dos julgamentos sobre nós. Seguimos esta trilha desconhecida pelo caminho escolhido na velocidade empreitada pela nossa consciência e ouvimos quem já esteve lá antes.

Mas a verdade pode não ser a que precisamos e ao sair da caverna onde voltamos a entrar constantemente nossa vida pode estar no fim ou no começo porque tudo é feito de possibilidade, mas é preciso sair das sombras, se afastar da água fresca, deixar o conforto de lado e ser a próxima possibilidade íntegra e próspera que há em ti mesmo. O conto nos leva a diversas parábolas e nos conecta há muitas histórias que já lemos.

É o que esperamos de Gaiman e sua literatura fantástica nos atentar para detalhes grandiosos fundamentais para escalarmos a montanha desconhecida dos nossos sentimentos e do movimento constante do nosso universo sem ser cruel, civilizado ou condescendente é justamente o reflexo criado por nós e àqueles a nossa volta. Vamos explorar esta montanha em nós e desta aventura repleta de consciência e metáforas para chegarmos a um local mais iluminado.
Editora: Intrínseca
páginas : 80
categoria: conto

Publicada incialmente em uma coletânea de contos do autor, A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras é uma história fascinante sobre família, a busca por um tesouro e a descoberta de um mundo invisível. Em uma colaboração inédita, os personagens e as paisagens de Gaiman ganham forma com um traçado sombrio e impreciso do artista Eddie Campbell, e o resultado é uma obra que passeia entre o livro ilustrado e o graphic novel, desafiando os limites entre texto e imagem em uma explosão de cor e sombra, memória e arrependimento, vingança e, principalmente, amor.

sexta-feira, março 20, 2015

Do lado de baixo (miniconto)


por Rafael Belo


Depois de tanto empinar o focinho, o porquinho conseguiu focar a visão. Porquinho, não! Porco! Não como o besta do Baby, porcos nunca foram nem seriam daquele jeito. Orwellianos, então, nem serão. Aliás, ele era o leitão que mandava. Leitão grande e vistoso, sempre à vista. Era a revolução em “porcoa”. Nada de bicho, nada mais animal que o homem.

Territorial, tinha presença de cercado e o atravessava, às vezes, a passos cruzados, mas normalmente trotava imperial de cá pra lá, de lá pra cá. Só queria consumir e se consumia na impaciência e agitação. Inquieto grunhia e bufando tentava encarar do lado de baixo. Deixando tantas marcas de patas quanto uma legião de porcos. Uma vara invadindo e devorando até a suposta chusma dominante por ali.

Mas, não! Era sozinho. Corrupta solidão... Só, sentia raiva e cercava a cerca por dentro... Sua ambição diária era mostrar ser a própria vara independente servida por uma pessoa ou uma chusma. Para Porco era corja o servindo e o alimentando. Tudo a ser feito era comer e crescer. “Ah, que belo leitão eu sou...”, se suspirava.

Tinha uma vaga perturbação e enuveava seus brilhantes olhos desafiadores. Quando a chusma se divertia, sua corja “porcoal”, um dia antes sumia uma galinha e codornas do quintal... Sem noção de tempo, sabia haver uma hora só dele, mas preferia ser déspota imortal. Lembrava de histórias de terror natalinas do tempo “porcal” do fim da engorda quando a corja devorava o melhor leitão... Por isso, se fazia selvagem, fingia voltar a ser javali, mas tudo isso porque temia acumulações de gente, era o cúmulo a diversão dos outros ser seu provável funeral.

quinta-feira, março 19, 2015

Semelhanças



exacerbados aos extremos, ambos alterados
em lágrimas negras do escorrido óleo adulterado,
máquina do introdutório feita de carne,
desfalecida ave se debatendo no chão,
trave do equilibrista desequilibrado,

bêbado alpinista das áreas planas,
cedendo cedo sua sede à sede,
urbano sedento por outras lembranças
semelhanças metálicas com a esquálida recordação
de um jardim além de mim.

(Rafael Belo, às 08h33, quarta-feira, 18 de março de 2015)


quarta-feira, março 18, 2015

Curtida ilusão (miniconto)



por Rafael Belo

O cheiro sempre chega certeiro, primeiro, antes de quaisquer outros sinais. A inquietação soma consoantes e vogais para a emissão dos grunhidos sequenciais ... Advertências demais. Uma gritaria em outra língua e nada mais. Vai mexendo a cabeça... Talvez entorpeça e enlouqueça fingindo só comer e dormir, comer e dormir e comer e dormir.

Focinho de porco cheio de ouro e diamantes especiais para fora da cerca, para que não nos perca. Mexe, remexe, chafurda e se joga na lama, cama da fama sonhada por poder sem nos tirar do olfato. Mas, de fato quer nos ver. Enxergar quem está à espreita, à torta e à direita quer nos afugentar. Apura as orelhas para ajudar o olfato, quer o contato apenas para arrancar pedaços, meu e seu...

Uma máquina de carne andando como um leão enjaulado, enfurecido por não nos tocar, ser objeto para olhar e comer, mas devorando tudo e todos e alcançando no grito desesperado cada ouvido em um arrepio demorado para explicar... Quem sabe um presságio de algo a não ser explicado na ausência da necessidade de entender, então se expressa sendo o próprio ser...


Porquinho se sentindo javali com seus humanos olhos fora do alcance, mas ainda sim grunhindo, bufando, se debatendo na madeira com seus anéis preciosos brilhando, porém preso ali... Com a lavagem. Um falso selvagem sempre esperando o alimentarem. Alimentação de restos, ostentado modesto... Sem nenhum protesto, ao contrário, satisfação.  Não se esquece, mas invariavelmente não quer recordar. Acordado não pensa, devora de cor. Embriagado pelas suas sobras curte ressaca, compartilha solidão.

terça-feira, março 17, 2015

Sem lembranças




Lágrimas alcoólicas escorrem históricas,
máquinas automáticas da insatisfação
embriagadas na provisória crucificação
estigmatizada na virada do esquecimento,
instrumento líquido para não recordar.

Ressaca virtual curtida, comentada na orgia da ausência
audiência acordada para não pensar,
compartilhada na aparência de imaginar,
lágrimas de máquinas escorrem...
Sem nem sequer lembrar.

(às 13h15, Rafael Belo, segunda-feira, 16 de março de 2015).

segunda-feira, março 16, 2015

É fácil



por Rafael Belo
Atentando-nos tem sempre alguém prestando atenção. Não importa nossa crença ou os pensamentos de quem nos vê porque este pode ser nós mesmo em um elevado grau de consciência sobre as consequências dos atos contínuos feitos por nós. Um deus lubrificante e “desinibidor” sempre cultuado é fermentado e destilado. Estas bebidas variam do social para o antissocial com a mesma velocidade dos copos virando e, então, lá se vai uma festa perdida em esquecimento alcoólico.

Fora as agressões e as amarras do monstro escondido na lucidez, o eu lubrificado acaba solto e corajoso há milhares de anos. A ardência no ar e o bafo inebriante vira briga de festa, de bar, daquele alvará de libertação, de fim de escravidão para àquela criatura confabulando na nossa mente querendo socar, reinar, os holofotes e o microfone para comandar aquele corpo, outro durante o dia, enquanto trabalha...

Própria mente conspirando para ir à forro, ser farra enquanto a música toca, durante a revelação daquele desconhecido dos outros e declarado estrangeiro por nós mesmo, mas não. Quem se revela não está escondido está lutando para ser quem dá bom dia ou grita bom dia por quê?!  Somos o álcool e a água e por não nos aceitarmos ignorantes perpétuos ignoramos a individualidade verdadeira e a diversão sem desculpas.


Embriagados estamos de olhares imaginados, de cobranças inválidas, de nos afogar turistas da vida consequência das nossas escolhas, mas não buscamos significados reais, queremos esquecer, nos iludir e festejar a vontade do prazer pelo prazer e não entender quem é o monstro e o significado de saber enquanto somos massa porque é fácil moldar e lidar com a ressaca com receitas caseiras e analgésicos industriais.

sexta-feira, março 13, 2015

Regados jardins (miniconto)


por Rafael Belo

Estava tão impermeável sua vida que ela secava. Acumulava pó e o vento a espalhava. Foi assim, com um pedaço dela chegando com um hálito quente que ele a notou. Ela precisava de menos poeira e muitos menos do mais em seu depósito mental e material, mas mesmo sendo uma redundante duna ambulante ele enxergava o brilho fechado nela. A olhava sem ver nada mais, como se o universo acabasse de começar em um inédito Big Bang.

Sentiu-se ele mesmo impermeável. Deu-se conta de ainda não ter saído do pó de onde viemos todos e com toda a chuva passando por ele diariamente, ainda não se molhara. Ele realmente enxergava aquela luz nela. Seus olhos lacrimejavam e secavam antes dele perceber, mas a ardência permanecia. Naquele momento chovia e era como se as gotas desviassem deles e escorressem por toda cidade.

Ela o viu pelo canto do olho e ficou sem se mexer, lembrando vez ou outra de respirar, mas permaneceu intacta. Uma estátua de sal maculada pelo esquecimento. Uma destas raridades paradas no tempo depois de uma bárbara invasão. Ela estava com a cabeça doendo de tanto forçar os olhos para não perdê-lo de vista, sem se virar. Olhava-o como se visse um pôr-do-sol interminável no meio da noite.

Cientes de que sementes e sequidão eram aridez. Eles tentariam enriquecer seu próprio solo, cultivar jardins pessoais, se Amar primeiro... Ser tão felizes individualmente a ponto de um grão de poeira ser praia e uma lágrima o mar. Então navegar... Se reconheceriam novamente, mas com a sensação, com sentimento totalmente desconhecido para compartilhar a soma e um no outro, quem sabe, finalmente se encharcar.

quinta-feira, março 12, 2015

Vão-se




o absoluto empoça na joça
uma viva humana paçoca
de cada esquecida roça
pensando ser simplesmente jardim

nem doce tão pouco salgada, festim
bala falsa, uma troça virada do avesso

com todo contexto chovendo
subliminar sem parar com cada gota a transbordar
alagados ilhados a intensamente se derramar

inundações vãs nos vãos que não vão secar.
.

(Rafael Belo, às 19h10, quarta-feira, 11 de março de 2015).

quarta-feira, março 11, 2015

Confidentes distantes (miniconto)



por Rafael Belo

Varrendo a calçada alagada na hora da chuva, tentando se ocupar. Parando todo momento e expondo seu sentimento a quem passar. Um dedo molhado de prosa sem impermeabilidade, por favor. Depois segue passando a vassoura na água. Prestando atenção de verdade adiante, lá onde o ônibus para, enchendo e derramando gente encharcando a roupa aos poucos com a indiferença dos loucos tão sábios em seus próprios rios.

A senhora via virem dois jovens com minutos de diferença. Não se conheciam era evidente, só esperavam, por acaso, o mesmo ônibus, mas não desceriam no mesmo lugar. Porém, se olharam confidentes. Confidência do que ouviram. Falavam os impermeáveis motoristas diante da impermeabilidade daquela garoa da noite vermelha. Os dois estavam protegidos pelo teto do ponto de ônibus.

Sozinho à frente, cabelo liso-duro-sujo, um universitário nem ligava para a chuva a cutuca-lo por todos os lados. Não se mexia nem confidenciava aquele segredo de estranhos entre os dois a o observarem e lá vinha o olhar confidente e o sorrisinho cúmplice. À direita sobravam explicações e nenhuma resposta se fixava ao solitário homem também se molhando ou era impermeável também?


Após algum tempo se protege com o capuz do moletom e se encolhe no próprio mundo da sua playlist sem ritmo. Só luzes e sombras escorriam com a chuva, tudo mais se acumulada e os dois desconhecidos dedilhavam com os olhos outras confidências silenciosas que ali existiam, bastava atentar os ouvidos. Eles ainda esbarravam o olhar, mas em tantas formas de escolher o autismo impermeável, eles somente olhavam para a cidade chovida se inundando nos alagamentos de gotas contadas, sem nenhuma confidência em palavras.  Não queriam mesmo se conhecer ou falar, não havia necessidade.

terça-feira, março 10, 2015

eterno hesitante


janela aberta chuva indiscreta a se derramar

declamando a impermeabilidade de ser quem é
o avesso de mar a chorar

encharcando o temporário levando o estagiário a navegar
em uma cimentada acidentada maré
andando sob as águas nos pés
a cidade insiste em se afogar

em copos de plástico a acreditar
nada além da extrema fé

a efemeridade permanece mais que o eternizar.


(às 21h47, Rafael Belo, segunda-feira, 09 de março de 2015)

segunda-feira, março 09, 2015

Abra a janela

por Rafael Belo
O som da chuva traz sorrisos e arrepios simultaneamente. Depende de quem somos. Independente do tempo da queda das águas já não tão puras como antes, também já não o somos. Caímos cadenciais como estas águas de março diariamente, mas, como as cidades, estamos impermeáveis. Não absorvemos a garoa, chuvisco ou torrenciais granizos e temporais. Inundamos e levamos nossa confiança e convicção para longe porque já não há mais onde escorrer. Nossas vias se vão e basta olhar para a cidade que ela também se vai.

Mas para onde? Para o mesmo lugar, porém é necessário adubar, enriquecer o solo empobrecido onde mudos não mudamos e nem plantamos as mudas certas para reflorescer. Ora! Nem jogamos o lixo no lugar, não cedemos espaço, acentos, assentos só ocupamos e nada mais. Há naquela cor natural ainda não desbotando o sorriso pelo sorriso, o brilho pelo chocolate presenteado, a flores bem-vindas, o semblante se irradiante diante de um bebê e perante um cachorro no colo.

Isto é gentileza. O quanto dói ser gentil, oferecer o lugar, jogar o lixo na lixeira? Parece muito dolorido se expor, permitir o outro se aproximar, se arriscar... Viver uma dor passada é estender o sofrimento ao nada e esperar encharcados o sol secar enquanto é noite. Então, transbordamos e levamos outros conosco como a cidade carregando motos, carros, casas e vidas, levamos caminhos, oportunidades, necessidades, nossa poesia...


Somos o som da chuva, o barulho da cidade, esta infertilidade promovida pelo nosso pânico a nos paralisar enquanto nos preocupamos com a inutilidade do medo, ao invés de nos alertar para a necessidade deste alerta. Como vamos sorrir ou arrepiar se nos esvaziamos das coisas erradas? Precisamos parar com as deturpações para plantar a semente e colocá-la no sol mesmo dentro de um temporário copo de plástico, mesmo nem tudo sendo efêmero precisamos abrir a janela.

domingo, março 08, 2015

Estamos acostumados? (resenha de Objetos Cortantes)

por Rafael Belo


Para cortar é preciso estar afiado? Até papel corta e faz o sangue escorrer viscoso, faz poças psicológicas coagulando em algum canto do cérebro e do corpo. É cortante as reações das pessoas e da natureza em contraste as possibilidades contrárias, algo sem fio, mas com ponta pode ser perfeitamente perfurante. Até uma coisa antiga e enferrujada acaba por ser danosa e mais letal que a morte. Basta ser forte ou fraco o suficiente. Objetos cortantes de Gillian Flynn é uma estreia feita do metal mais mortal recortando a realidade.

Muitos mistérios flutuam cegantes à vista com quinas machucando o tempo todos os personagens profundos e demasiadamente humanos deste livro que lhe oferece uma tesoura para picotar rasos papéis. Michelle, Adora, Amma e Marian são a família disfuncional e voluntariosa desta surpreendente leitura. É como matar a vontade de nadar em um desconhecido rio em um dia de vento gelado, mas com a temperatura acima de 40 graus.

Primeiro tocamos a água com as mãos e recuamos, depois ingerimos coragem aos olhos desconfiados e desafiantes dos outros nos impulsionando a ousar o pé. Água derretida das próprias calotas polares... Sentamos e nervosos olhamos em volta para garantir não sermos empurrados em sentir milhares de agulhas furando todas as partes do nosso corpo simultaneamente. Saímos do raso junto com a autora e aprendemos a nadar em sua obra.

Quando a água já está na cintura queremos mergulhar. Está frio lá fora e a autora tornou aquela estreia dela nossa estreia em sua leitura. Está confortável, bom e já não há mais aquela vontade de sair. Na visão de Michelle descobrimos os crimes e quem os praticou desta maneira mais chocante e pior, com crianças, estamos imersos com a personagem até o fim, se bem que o fim poderia ser mais elaborado, ou seria apenas mais uma forma de término ao qual não estamos acostumados?

As palavras são como um mapa de estradas para o passado perturbado da jornalista Camille Preaker. Acabada de vir de uma estadia breve num hospital psiquiátrico, o primeiro artigo que o jornal de segunda categoria onde Camille trabalha lhe atribui leva-a relutantemente de volta à sua cidade natal para cobrir o assassinato de duas pré-adolescentes. Desde que saiu da cidade há doze anos, Camille raramente falou com a sua neurótica e hipocondríaca mãe, nem com a meia-irmã que mal conhece...

Único absoluto (homenagem a todos os dias da Mulher)

Feliz todos os dias da Mulher,


happy every day of the Woman
 

sexta-feira, março 06, 2015

olhARes do alto (miniconto)


por Rafael Belo

Poucas pessoas passavam pelo terminal naquele horário. Eram quase 9h da manhã de uma sexta-feira, os ônibus mal paravam e já partiam. Os passarinhos olhavam... Os funcionários trocavam de turno e as duas crianças - entre poucos saudáveis 5 e 9 anos – pareciam com acessórios daquele lugar. Acessórios ignorados, perdidos e praticamente lutando pela sobrevivência desde o primeiro horário de pico do dia.

Inicialmente eram obstáculos para os apressados paulistanos (de origem ou por adoção) e depois elas precisavam se alimentar... Ninguém olhava para baixo, outro desafio... Todos evitam sentir pesar. Queriam se afastar do contato visual e de relacionamentos... Nada de se envolver de verdade. Mas sabiam de uma forma que podiam esquecer... Esqueciam... Como fingir a ausência de duas menininhas?

Presentes embaixo, famintas como bonecas largadas pelas meninas mimadas que têm demais e quase nada de afeto de fato. Foi assim que uma jovem devorando um prensado cachorro quente se encolheu como se fugisse da noiva do Chuck. Ela fazia parte de um casal solitário. Era aquela parte virando o rosto em pânico, mas indiferente sem dar qualquer resposta ao pedido vindo de algum ponto daquela mãozinha a encostar nela.


Ele olha segurando um lábio retorcido ao mesmo tempo no qual repassa os porquês de terem chegado até ali. Não consegue sorrir e dobra seu pedido como as meninas dobraram... “não incomodem. Deixe o cliente em paz...” Ele olha respirando forte para o funcionário ávido por satisfazer seu comprador... Depois apenas ignora sua vontade e as palavras desse com a mesma intensidade do abraço para as meninas. Um capaz de tirá-las daquela realidade exploratória, dali... Desta cidade fria e distante, mas apenas atende a vontade delas. Felizes elas comem pão de queijo enquanto ele espera silenciosamente o labirinto com o qual casou.

piedade


apiedai-vos sempre dos empoderados e dos humilhados,
eles são cidades perdidas, aturdidas com seu excesso de luzes

carregando uzis nas línguas e bombas nas mãos

empoeirados imóveis, quase sãos,  nas reticências que criaram, sentados
em seus labirintos, irados com todos os instintos desligados,
observando de cima não sabendo estar embaixo
evoluindo a vários óbitos

sem saber ser o outro lado do tópico
utópico como uma cidade imaculada cheia dos restos
da saliva escorrida de Caim.


(Rafael Belo, às 08h51, quinta-feira, 5 de março de 2015)

quinta-feira, março 05, 2015

Roçando os braços (miniconto)

por Rafael Belo

Ela decidiu ir ao encontro dele. Era perto, afinal. No máximo meia hora de caminhada. Ambos precisavam se encontrar. Sentiam-se perdidos, aturdidos com as próprias limitações. Mas por causa destas baterias insuficientes, o excesso de aplicativos nestes celulares inteligentes e, principalmente, pela distração que um causava no outro, eles se esqueceram de carregar o telefone móvel... Destas coisas que mentimos ser coincidência, os dois ficaram sem celular enquanto planejavam se encontrar no meio do caminho da cidade.

Durante o expediente e em um dos piores plenos horário de pico deste ano sentiram o famoso aperto no coração, que os levou àquela surpreendente tentativa de fazer surpresa e, curiosamente, acabaram se surpreendendo. Haviam feito um mapa. Este se desfazia neste momento nos ansiosos bolsos suados. Eles andavam olhando para frente, mas nada enxergavam. Era como se tivessem feito dilatação das pupilas e utilizassem fones de ouvido e alto e mal som. Eram pontos transparentes em meio ao cinza.

Quando se deram por si já estavam tão longe de onde saíram quanto suas origens. Eram um devaneio, uma bruma que não se dissipava. Em um movimento sincronizado à distância, levaram a mão ao bolso, ao celular sem bateria e aos mapas sem utilidade mais. Levantaram a cabeça tentando se localizar... Ela logo cerrou os dentes em claro sinal de bruxismo e os comprimiu forte fazendo ressaltar os músculos do maxilar. Ele expirava forte, contorcia o nariz e umedecia os lábios, se descobriu perdido.


Ao menos duas horas haviam se passado sem eles estarem em lugar algum. Estavam tão perto um do outro e de si mesmos, mas não se encontravam. Continuavam não enxergando nada. Pareciam sofrer de cegueira nervosa. Bastava olhar para o outro lado da rua e se encontrariam. Quem sabe dissipariam a neblina das suas origens... Sentiam-se estarem tão próximos que doía como se o coração fosse um faminto animal selvagem se debatendo pelo corpo todo em busca de uma saída. Eles passariam boa parte da vida nesta busca passando quase ao lado, praticamente roçando os braços e, então, seguiriam na própria perdição. Ruminando em um dia amanhecido ainda entrando no tom.

quarta-feira, março 04, 2015

vertigens




labirintos famintos devoram insaciáveis
os instáveis moradores de si

cantando em dissonante nota na cidade remota,
a anedota projetada no espelho um dia hospitaleiro
hospedado, agitado, no seu prolongado ano prisioneiro

rodando no próprio eixo, nos arredores por aí
sem saber ter onde ir indo liberto seu incerto interiorano


rasgados planos capitais sem cantos soltando ruas sem saídas
partidas pelas feridas escorridas das veias abertas

desertas da origem na vertigem
que nos trouxe até aqui


(Rafael Belo, às 15h29, terça-feira, 03 de março de 2015)

segunda-feira, março 02, 2015

Sem sair do lugar


por Rafael Belo

Nos nós das vielas, ruas e avenidas há sempre o princípio, as origens. Muitos cruzamentos, várias intersecções e a mesma finalidade: nos levar a algum lugar. As pontes, tuneis e viadutos conectam um ponto ao outro e o movimento não para, mesmo se o domingo for estendido além das horas. Não há atalhos e quando aparece algum caminho disfarçado de mais rápido acaba sendo ao contrário, demoramos mais para chegar. Esta é a cidade e nós somos iguais.

Precisamos conhecer a cidade, nos conhecer. Saber os melhores lugares, as qualidades, os piores becos, os defeitos, as esquinas erradas e as curvas mais certas porque não saberemos em hipótese alguma a totalidade de qualquer vida e objeto, mas podemos chegar o mais perto possível sabendo como trafegar por aí e dentro de nós. Não há sequer um sistema de posicionamento geográfico capaz de nos levar onde queremos se no fundo não sabemos onde fica. As origens precisam ser descobertas.

Por mais que o tempo passe novas vias surgem junto com sarjetas ocupadas e ambas estão em toda parte nos olhando como se fôssemos um quadro abstrato obrigando o outro a nos entender, aos sinais funcionarem conforme nossa vontade... É fascinante como pensamos ser ruas de mão única... Como o passado é causa do presente... O deslumbramento adolescente que não nos larga, continua em larga escala nos afetando afetados que somos e negamos. Depois temos raiva, barganhamos e ficamos depressivos, mas nunca aceitamos. E o ciclo reinicia como se vivêssemos de luto.


Luto pela morte do que não chegou, não veio, não reagiu porque nada agiu antes, mas lutamos, sonhamos e de alguma forma não percebemos que nos matamos... De uma forma incompleta nos deparamos com nós mesmos e batemos portas deslumbrados adolescentes rebeldes que ainda estamos, explodindo hormônios, criando faces com todas as fases da lua indo do raso ao profundo nas próprias descobertas. Enquanto o ponto não chega, não há origem e nem destino, parece que só há o ônibus errado para pegar com a estrutura abalada e todas as direções do avesso fazendo o olhar enviesar. Nos deixamos no nosso labirinto sem sair do lugar.