sexta-feira, março 13, 2015

Regados jardins (miniconto)


por Rafael Belo

Estava tão impermeável sua vida que ela secava. Acumulava pó e o vento a espalhava. Foi assim, com um pedaço dela chegando com um hálito quente que ele a notou. Ela precisava de menos poeira e muitos menos do mais em seu depósito mental e material, mas mesmo sendo uma redundante duna ambulante ele enxergava o brilho fechado nela. A olhava sem ver nada mais, como se o universo acabasse de começar em um inédito Big Bang.

Sentiu-se ele mesmo impermeável. Deu-se conta de ainda não ter saído do pó de onde viemos todos e com toda a chuva passando por ele diariamente, ainda não se molhara. Ele realmente enxergava aquela luz nela. Seus olhos lacrimejavam e secavam antes dele perceber, mas a ardência permanecia. Naquele momento chovia e era como se as gotas desviassem deles e escorressem por toda cidade.

Ela o viu pelo canto do olho e ficou sem se mexer, lembrando vez ou outra de respirar, mas permaneceu intacta. Uma estátua de sal maculada pelo esquecimento. Uma destas raridades paradas no tempo depois de uma bárbara invasão. Ela estava com a cabeça doendo de tanto forçar os olhos para não perdê-lo de vista, sem se virar. Olhava-o como se visse um pôr-do-sol interminável no meio da noite.

Cientes de que sementes e sequidão eram aridez. Eles tentariam enriquecer seu próprio solo, cultivar jardins pessoais, se Amar primeiro... Ser tão felizes individualmente a ponto de um grão de poeira ser praia e uma lágrima o mar. Então navegar... Se reconheceriam novamente, mas com a sensação, com sentimento totalmente desconhecido para compartilhar a soma e um no outro, quem sabe, finalmente se encharcar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lindo,um dos melhores que já li....." e um no outro finalmente se encharcar"...perfeito mamyd