sexta-feira, novembro 25, 2016

Lá no fundo (miniconto)





por Rafael Belo

Ela estava cansada daquela corrida, mas não era por correr. Estava tão condicionada a ponto de poder continuar por dias na correria. Não. O problema era o calor insuportável. O cansaço não vinha e Melodia escorria. Sentia-se uma cachoeira após um ano de diário temporal. Lembrava as noites em claro encharcando as roupas e a cama sem nenhum motivo bom... Só o calor. Nem a temperatura do banho importava mais, antes de se vestir... Quando se vestia já precisava de um banho novo e este tempo perdido ela começaria a jogar fora onde quer que estivesse.

Chegava já. Melodia corria balançando resignada e negativamente a cabeça. O fazia com tanta força que mal percebeu quando jogou o celular longe, apenas para não ver as horas. Nem se deu conta quando o relógio cardíaco também marcador de tempo acabou pisoteado. Ela nunca tinha visto tantas pessoas disfarçadas de incontáveis profissões correndo na mesma direção que ela. Bastou perceber para parar de repente. Houve xingamentos, esbarrões e trombadas doloridas mesmo, além de uma estranha encarada silenciosa e inexpressiva que simplesmente se demorou ali até simplesmente desviar como se nunca tivesse acontecido.

Aquela festa a fantasia itinerante despertou Melodia. Ela franziu a testa e movimentou cada músculo facial quando se viu ali, ao contrário do fluxo. Lentamente tirou o olhar das pessoas e lentamente o levantou para o horizonte. Procurou um espaço que não havia e se derreteu diante da visão. Não tinha certeza se o dia acabava ou começava. Percebeu que fazia muito tempo desde sua perda da falta de noção de tempo. Sorriu quando pensou sobre os reflexos daquela pintura celeste aparecerem incompletos...


Começou correndo calmamente, trotando, mas logo estava – inexplicavelmente – usando toda força física e mental para manter as pernas em uma velocidade incrível, mas fantástico mesmo era as pessoas saírem da frente. Se neste momento houvesse uma visão aérea ainda não haveria espaços vazios, mas um corredor humano tinha parado e parava de criar várias versões viciadas do passado e este novo fluxo ainda se livrava do tempo quando Melodia chegou cantando em casa para se libertar de todo controle de hora em hora girando no que não fez/no que faria. Finalmente assumiu ser original lá no fundo e iria cavar este presente.


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