sexta-feira, setembro 05, 2014

desperdício (miniconto) – por Rafael Belo




Estava tudo seco ao redor daquela umidade. Nela havia verde e pássaros, além de um branco botão brandindo ao fim do dia. Era uma flor simples, mas dentro dela havia algo mais alvo ainda, vistoso como uma beleza única pulsante, na verdade uma orquídea repousava ali prestes a desabrochar para ser a principal paisagem pura daquele lugar invasor. Sálvio observava todos negarem o fato.

Não só por negarem a si mesmo, naquele contexto esta autoanulação era o menor dos problemas, aquele ambiente invadido silenciosamente continuava diminuindo sem sequer uma contestação. Todos brincavam de cegueira, lentidão e até ausência de raciocínio, como uma espécie de incompreensão crônica se alastrando pelo ar, se fazendo de doença degenerativa.

Sálvio vivia ali sem ser notado. Esperto para qualquer movimento, ele se escondia e se mantinha fora do alcance de todos. Sabia que o chamavam de O Vulto ou Fantasma da Mata. Havia uma lenda sobre ele e como havia morrido... Pelo menos, da última vez que conferiu estava bem vivo, vivia, aliás, dos restos de comidas dos restaurantes. Estes desperdiçavam uma barbaridade de manhã, de tarde e de noite.

Sálvio desistira da convivência com tantos hipócritas e lutava para manter suas convicções intactas. Sentia-se tão livre vivendo como observador e totalmente seguro no suposto lugar selvagem cheio de quatis, capivaras e todo tipo de pássaro. Ele era um deles. Nunca mais seria doméstico e hipócrita naquela reserva mais civilizada que qualquer lugar que já esteve. Mas, tinha certeza que estava em extinção como todo aquele ar livre. Como ali, ele seria sitiado clandestinamente e daria lugar a outra coisa... Sem ninguém perceber nem contestar.

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